“Eu mesma me curo/ Mas antes preciso/ Me envolver na loucura/ Que chamo memória”.
É com versos límpidos e entremeados, como da faixa “Pequena Ladainha de Cura” que Roseane Santos concebe seu disco de estreia Fronteiriça, lançado hoje, dia 27 de julho. Um álbum carregado de conexões, intersecções e ciclos de um nome ativo no cenário de Curitiba. Roseane esbanja vivência e pesquisa, teoria e prática, quando o assunto é música. Do samba ao coro de voz, ela dedicou seus 18 anos de carreira aos ritmos afro-brasileiros, à pesquisa pelo tambor e pelo maracatu, e coleciona ricas apresentações ao lado de Nelson Sargento, Dona Ivone Lara, Lia de Itamaracá e Kiko Dinucci.
Em Fronteiriça ela se autoriza a ocupar o lugar de compositora, revelando uma poética movida a tudo que está em constante renovação. Em busca de novos diálogos com sua origem, ela aproxima passado, presente e futuro através da fenda da ancestralidade. Evoca relações com os trabalhos de Milton Nascimento, Josyara e Juçara Marçal.
O trabalho inaugural conta com a produção musical de Leonardo Gumiero e Luciano Faccini. Ouça logo abaixo e, na sequência, confira o papo que batemos com Roseane Santos sobre a elasticidade do conceito Fronteiriça e rótulos musicais.
Roseane, perguntar sobre o título de qualquer disco é meio clichê, mas o seu disco não tem um título qualquer. “Fronteiriça” pode indicar um marcador de intersecções, mas também um não lugar. Entretanto, o disco não é incômodo, mas sim bastante acolhedor. O que é esse lugar de “fronteiriça” para você e como ele está traduzido no disco?
Fronteiriça foi pensada não como limite ou linha divisória, mas como espaço de conexão. Às margens sim, mas pra avançar e conhecer. Quando a gente avança com certeza, rompe posturas anteriores. Fronteira às vezes é obstáculo, mas nesse caso não. É abertura de caminho que segue encontrando e se conectando com outras fronteiras. A construção do disco foi lenta,mas não calma: as estranhas águas que parecem mansas mas, que por baixo, muitas correntes e logo à frente uma catarata. Fronteiriça é um pouco de todos e um muito de mim e da minha trajetória. Às vezes violento, às vezes tranquilo, mas sempre fluindo. Sobre ser acolhedor, como você diz, acho que é porque esse limite, essa fronteira, também pode ser fuga, descanso, liberdade, mas no caso do disco é muito acolhedora. Todos estão lá, todos com suas histórias, seus jeitos de fazer seu desejo. A Fronteiriça acolheu cada pessoa e cada elemento, e isso se deve à escolha de com quem trabalhar e como trabalhar.
Esse álbum marca também sua afirmação enquanto compositora. Que amplitude isso dá para o seu trabalho? Como é ver seu disco, enquanto compositora, pronto?
A composição é a grande novidade pra mim também. Nunca me imaginei compondo. Sempre escrevi, mas nunca em forma de canção; fazia músicas para crianças, brincadeiras desenvolvidas ao longo do tempo que dei aula. Abrir meus cadernos de escrita e tirar canções dali foi feito do Luciano Faccini, produtor e diretor artístico do disco. Daí, a partir do nosso diálogo e das provocações dele, consegui mostrar meu breve repertório que cresceu ao longo do processo. E a cada mostragem tímida que fazia do meu material, tanto ele quanto o André Garcia, que assina alguns arranjos base do disco e alguns violões, me incentivavam, e aquilo que, por vezes, eu acha muito simples e sem grandes pretensões virava uma canção linda. Tem a minha bagagem, mas também tem um grande estímulo para que essa compositora aqui acreditasse que é possível. Acho maravilhoso ouvir o disco pronto, espero que ele chegue às pessoas e amplie fronteiras.
Você tem uma carreira formada pelas experiências com grupos de samba, gafieira, tambor e canção contemporânea. É muito usual que crítica e público limitem essas manifestações como algo “ultrapassado”, impossível se ser renovado, de soar contemporâneo. Como você lida com esses rótulos e de que forma você busca legitimar sua contemporaneidade?
Acho que essa emergência de hoje, mais ainda nesses tempos, nos coloca numa esfera que às vezes é difícil lidar. Eu sou antiga, sou do tempo do LP. Comprar discos, ouvir até furar, como diziam, achar que a faixa de número 4 era meu número da sorte porque as musicas de número 4 nos LPs eram sempre as maravilhosas. Anos depois, fui descobrir que no LP era o lugar onde os harmônicos soavam melhor, e eu me achando a com sorte. Conto isso porque existia, sim, o investimento pesado no sucesso dos trabalhos, mas também era um tempo de grandes rádios da difusão, dessa canção estar ligada aos ouvintes. Quando eu fazia meu trabalho com samba de gafieira, samba, batuques e música vocal, nunca imaginava que era vendável ou porque tem público. Eu fiz porque era o que eu queria, o que eu gostava ou mesmo o que tinha pintado pra fazer na época e sempre corri atrás de fazer do meu jeito. Meu primeiro compromisso era comigo, com as minhas necessidades e anseios. O ultrapassado e “velho” tá sempre ligado a fórmula e não a música em si. Tem gente que toca coisas novas de jeito ultrapassado, tem gente que toca coisas consagradas do seu jeito e isso é maravilhoso. Rótulos? Quem nunca teve? Na nossa cultura, então, a gente sempre é igual a alguém e quase normalmente alguém da gringa. “olha, a nova Billie Holliday”. Referências sempre temos, mas tem muita gente desenvolvendo coisas. O contemporâneo é o de agora e o agora comporta tanta coisa que nem sabemos o que é de fato. Mas o contemporâneo também traz os novos rótulos e tudo chancelado por likes. Muda de acordo com o tempo. Meu trabalho é o que desejo dizer agora. Posso falar de coisas pesadas, profundas e de levezas também. Sou de agora, tô viva no meu tempo.