Pode parecer difícil de acreditar, mas o funk ostentação é uma bela ferramenta pra compreender a obra de um dos principais pensadores contemporâneos.
MC Guimê reproduz em grande escala o que o polonês Zygmunt Bauman estuda há anos em suas publicações. Quando o maior representante do funk ostentação diz em uma entrevista com Marília Gabriela que “a sociedade obriga você a ter um carro legal pra ser bem tratado, então eu vou chegar com um carro legal”, ele quer dizer a mesma coisa que Bauman quando ele destaca em seu livro Vida para Consumo (2007) que, em uma sociedade do consumo, “o sentimento de pertencimento não é obtido seguindo-se os procedimentos administrados e supervisionados por essas ‘tendências de estilo’ aos quais se aspira, mas por meio da própria identificação metonímica do aspirante com a ‘tendência'”.
Consumo, logo existo.
Mas por que a NOIZE resolveu falar do funk ostentação relacionado a um cara sério como Bauman?
Porque quando Bauman diz que “o consumo é uma condição” à qual todos nós, capitalistas, estamos sujeitos. Ele nos permite mostrar que o funk ostentação não é nada mais do que um reflexo das nossas vidas, só que de uma forma mais escrachada. Não é a toa que gênios da música como David Bowie compreendem tão bem a época em que vivem, estando sempre à frente dela: Bauman é daqueles sociólogos que todos deveriam ler, pois tem a habilidade de falar sobre o presente. E música nunca é (apenas) sobre o próprio umbigo do artista.
Não vá confundir o “funk ostentação” com o “consumo ostensivo” da sociedade de produtores do século XX apontada por Bauman. A única coisa que os dois têm em comum é a ostentação de bens com grande visibilidade na sociedade. E para por aí. Enquanto a sociedade de produtores é estruturada na estabilidade e na satisfação da compra de bens duráveis, a sociedade de consumidores, a que MC Guimê exemplifica em suas letras, está fadada a nunca estar satisfeita. Como Bauman coloca, “somos impulsionados e/ou atraídos a procurar incessantemente por satisfação, mas também a temer o tipo de satisfação que nos faria interromper essa procura”.
MC Boy do Charmes foi o cara que escreveu a primeira letra de funk ostentação. Em “Megane”, ele é ainda singelo quando fala que chega com o carro e, não satisfeito, pode também chegar de 1.100 (aquelas motos que você dirige praticamente deitado). Mas em “Jaguar”, MC Nego Blue já ostenta pra valer e lista em sequência quatro carrões: Audi, Captiva, XT e Jaguar. É a pura exemplificação da sociedade que não se contenta com apenas um veículo na garagem, como nos velhos tempos.
Desfila de Audi e Captiva, adrenalina na minha XT
Quer tomar do meu Whisky, novinha?
Quer andar no meu Jaguar?
“Jaguar”, MC Nego Blue
Para Bauman, a sociedade consumista funciona pela lógica de mercado: “estar à frente” (diferente de “permanecer à frente”) proporciona um alto valor de mercado e mais demanda. A cada atualização do iPhone, mais pessoas o tem como objeto de consumo e mais caro ele fica. Na lógica de MC Guimê, e de outros representantes do funk ostentação como MC Gui, MC Daleste e MC Boy do Charmes, a “demanda” é a “mulher”. Quanto mais dinheiro eu ostentar, mais mulheres terei aos meus pés.
Hoje minha vida é outra
Tô na vida bacana
Meu dormitório parece boate
Mais de 10 mina na cama
“Vida de Bacana”, MC Guimê
Guimê conta em entrevista que suas letras são como um “grito de liberdade”. Aquele carro legal que ele queria ter, agora ele pode comprar graças ao funk. Diferente do que se pensava dos funkeiros, ele quer mostrar que esses artistas também podem estar bem arrumados. Visto que o “esforço de tornar a escolha publicamente reconhecível” é o que constitui a “autodefinição do indivíduo líquido-moderno”, Guimê e o movimento do funk ostentação conseguiram criar uma nova identidade para o funkeiro. Ela deve ser mantida como uma “pena perpétua de trabalhos forçados”, como diz Bauman. E já que estamos na sociedade do consumo, a identidade a ser mantida é uma “fonte inesgotável de capital”, ou seja, mais jóias e mais roupas de grife.
O funk ostentação é o que embala os rolezinhos, que nada mais é do que o comportamento claro dos cidadãos da sociedade de consumo. Milhares de jovens em um shopping em busca de bens não-duráveis e, claro, pegação. Segundo as próprias rolezeiras, o cara do rolê é aquele com o Nike Shox, camiseta de marca e calça branca. Primeiro a aparência, depois o papo.
Mais do que querer mostrar o que compramos, precisamos sempre estar renovando o que ostentamos. É a “síndrome consumista” de Bauman. Nós, os funkeiros da ostentação e os rolezeiros, vivemos de excessos e desperdícios. O último óculos da moda já vai estar ultrapassado daqui alguns meses. E se não tivermos o mais novo modelo, o sentimento de “inadequação” começa a nos tomar. Nas palavras de Bauman: “o que era perfeito para o mês passado é tudo menos isso neste mês”.
E assim como qualquer produto da sociedade do consumo, daqui a pouco aparece uma coisa nova pra desbancar os rolês e o funk ostentação.