A petição “Defenda o Livro: Diga Não à Tributação!” soma mais de um milhão de assinaturas desde o início de agosto, quando o Ministério da Economia anunciou a nova proposta de taxação aos livros, como uma parte da reforma tributária. A movimentação também acontece nas redes, onde milhares de usuários compartilharam as suas leituras favoritas com a tag #defendaolivro. A reforma de 2020 deseja encarecer em vez de baratear o seu acesso, tornando-o ainda mais restrito, como o manifesto das editoras, livrarias e entidades pontua: “Menos livros em circulação significa mais elitismo no conhecimento e mais desigualdade de oportunidades no país das desigualdades conhecidas, mas pouco combatidas”.
Os livros são importantes para quem escreve e para quem lê, são capazes de transformar pensamentos e de trazer novas ideias. “Não há livro insignificante, se ele chegou até você é porque foi importante o suficiente para alguém publicá-lo”, já dizia o escritor Ruy Castro. Quem gosta de música e de cultura, geralmente, conta com algumas obras guardadas com carinho na memória. Pedimos para alguns jornalistas, curadores e produtores para comentarem sobre os livros mais transformadores que já leram – essencialmente musicais ou não. “Ainda mais em um momento em que a arte vem sendo criminalizada, se empoderar da própria força artística pode ser cura”, explica a jornalista e apresentadora Fabiane Pereira sobre a obra O Caminho do Artista (1992), da autora americana Julia Cameron. Conheça todas as dicas a seguir:
Amanda Cavalcanti, apresentadora, jornalista e repórter do UOL
Pink Noises (2010) – Tara Rodgers
Esse livro mudou o meu jeito de pensar sobre várias coisas. Organizado como uma série de entrevistas com artistas mulheres da música eletrônica, Pink Noises traz a questão do fazer música, mexer com tecnologia e ser uma mulher existindo no mundo. Claro, ele fala sobre opressão e desigualdade, mas acima de tudo fala sobre o trabalho delas com detalhes da obra e da vida delas. Isso é muito importante quando a gente pensa sobre historiografia, em como a história vai ser contada, o trabalho delas estará lá?
A introdução conta com um estudo sobre o trabalho de jornalistas musicais, onde a autora mostra que as mulheres no trabalho deles são partes ínfimas, muito pequenas ou apenas para dizer “olha, tem uma mulher aqui”. O primeiro capítulo é uma entrevista com a Pauline Oliveros, nome que sempre aparece quando a gente fala sobre a história música eletrônica experimental. Ela é sempre aparece como a primeira, muitas vezes de modo essencialista, só para falar que ela estava lá. Parece que a história é contada de um jeito que obviamente separa as mulheres em um canto, então esse livro é importante para dizer que elas nunca foram um canto – e não só as mulheres, mas pessoas negras, não ocidentais, latinas, LGBTQI+…
Ele foi importante para mim no sentido de entender como registrar essas histórias e como falar da história dessas pessoas. E também me ajudou para decidir nos meus próximos passos. Criei o blog filhas do fogo, em 2016, para registrar as mulheres da música eletrônica experimental em São Paulo. Meu TCC de jornalismo foi uma pesquisa sobre a Jocy de Oliveira, pioneira no Brasil.
Brenda Vidal, jornalista e repórter da revista NOIZE
1976 – Movimento Black Rio (2016) – Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe
Esse livro chegou até mim através de uma pauta. Na busca por pesquisas para uma matéria sobre a repressão da Ditadura Militar contra os bailes de soul do movimento Black Rio para a revista NOIZE #92, que acompanhou o disco O Dia em que a Terra Parou (1977), de Raul Seixas. Uma vez que com ele nas mãos e mergulhada naquele universo de memórias, histórias e fotos lindas, decidi só devolver o livro quando eu terminasse de ler. Fiquei encantada em ver os detalhes de um fenômeno cultural de proporções tão incríveis, de um legado tão importante, recheados de histórias que pessoas da minha geração não conhecessem. Um ato revolucionário em plena ditadura!
Bônus: Slumberland: A Batida Perfeita (2019) – Paul Beatty
Não fala sobre jornalismo musical, mas é um dos livros mais musicais que já li. A escrita de Beatty – que deveria adotar “Beat” – tem um ritmo musical absurdo, acelerado, frenético e visceral. O enredo parte da jornada de um cara negro estadunidense que é produtor caseiro, que se vira fazendo trilha sonora para filmes pornôs, e que percebe que fez a sua batida perfeita, mas que ela precisa de um toque final: a colaboração de um jazzista que caiu no ostracismo. Ele descobre que esse artista pode estar em Berlim, e se muda para lá atrás dele. Um enredo muito doido costurado por muita, mas muita referência musical, principalmente de jazz. Meu sonho até era construir uma playlist com todas as canções que o livro cita!
Cleber Facchi, jornalista, fundador do site Miojo Indie e apresentador do podcast Vamos Falar Sobre Música?
Escuta Só – Do Clássico Ao Pop (2011) – Alex Ross
Escuta Só é um desses livros que nove em cada dez jornalistas apresentam em suas listas de referências. E não poderia ser diferente. Conhecido pelo trabalho como crítico musical na cultuada revista The New Yorker, o pesquisador Alex Ross convida o ouvinte a mergulhar em uma fascinante história por mais de quatro séculos de música. Registros cuidadosamente selecionados de alguns dos principais ensaios produzidos pelo jornalista norte-americano entre 1996 e 2010. Instantes em que somos convidados a revisitar a história de personagens e grupos icônicos como Radiohead, Björk, Johann Sebastian Bach, Franz Schubert e Bob Dylan. Um ponto de equilíbrio entre a produção erudita e o pop, o rock e as experimentações típicas da música de vanguarda, conceito que tem sido explorado por Ross desde o trabalho anterior, o também excelente O Resto É Ruído – Escutando o Século XX (2009). São 20 capítulos em que cada virada de página transporta o leitor para um cenário completamente distinto, revelando o fascínio e reverência de Ross em relação aos mais variados estilos musicais, épocas e artistas.
Chico Dub, curador do Festival Novas Frequências e gestor da plataforma Incidências Sonoras
Ocean of Sound (1995) – David Toop
Um dos meus livros de música favoritos é o Ocean of Sound, do inglês David Toop. Escrito em 1995, é um tratado enciclopédico, ainda que tenha menos de 300 páginas, sobre música ambiente, paisagens e ecologias sonoras e outras formas – etéreas, vaporíficas, de organização do som. Músico e curador, Toop é um dos maiores pensadores da música contemporânea e o seu texto é delicioso de ler. Um sem número de histórias e causos, muitos deles via entrevistas, são contados no livro. O resultado mistura sapos da floresta amazônica, mestres do minimalismo, o silêncio cageano, Aphex Twin, Don Cherry e outros pesos pesados do jazz, dub jamaicano, psicodelia, krautrock, música ancestral balinesa, Debussy e toda a sorte de alargamento de padrões musicais e ampliação da escuta.
Fabiane Pereira, jornalista, apresentadora do canal Papo de Música no Youtube e da rádio Faro MPB
O Caminho do Artista (1992) – Julia Cameron
Por várias vezes estive com o livro da Julia Cameron, O Caminho do Artista, na mão e alguma coisa me impediu de lê-lo. Foi num período em Lisboa, há cerca de quatro anos, que resolvi dar uma chance a autora e foi aí que abri um canal direto com minha criatividade. Considerado a “bíblia da criatividade”, o best-seller merece toda a fama que conquistou mundo afora. Não sou artista, mas trabalho com arte 24 horas por dia. Escrevo, idealizo, executo, entrevisto e produzo arte o tempo inteiro.
O livro me ajudou a recuperar minha auto confiança, a me livrar de bloqueios, a colocar em prática minhas ideias – mesmo as mais estapafúrdias – e a ler nas entrelinhas. Ele é uma espécie de apostila didática com técnicas organizadas num programa de 12 semanas que, em linhas gerais, desromantiza a ideia que todo processo criativo precisa ser sofrido. Ao contrário, com o livro aprendi a me divertir mais com o processo do que com o resultado, embora eu continue comemorando muito toda vez que atravesso um ponto de chegada após longa caminhada. Costumo dizer que O Caminho do Artista é o melhor remédio contra a procrastinação, é uma mola propulsora para persistência. Recomendo à todos, ainda mais num momento em que a arte vem sendo criminalizada. Se empoderar da própria força artística pode ser cura.
Gaía Passarelli, escritora e editora-chefe do BuzzFeed Brasil
The Man Who Sold The World: David Bowie and the 1970s (2011) – Peter Dogget
The Man Who Sold The World: David Bowie and the 1970s, biografia do David Bowie pelo Peter Dogget. É mais um estudo crítico do que uma biografia, porque foca na criação de álbuns e composição de canções, mas também tem elementos biográficos, claro – os acontecimentos importantes da vida do Bowie estão todos contatos em suas letras. O foco é a fase mais produtiva e inovadora dele, toda a década de 1970. Então pra contar, por exemplo, o que aconteceu por trás da composição e gravação de “Starman”, o Dogget usa tanto o contexto do que estava acontecendo na música em Londres em 1972 quanto referências culturais e memórias da adolescência do Bowie. É um trabalho brilhante e se tornou um livro para o qual eu sempre volto quando recomeço a ouvir Bowie de novo.
Isadora Almeida, jornalista e apresentadora dos podcasts Vamos Falar Sobre Música? e o POPCAST
Margrave of the Marshes (2006) – John Peel
Comprei o Margrave of the Marshes por acaso em uma viagem em 2016. Sabia quem era o John Peel e a importância dele como um dos radialistas mais importantes da história e peça chave na difusão do rock nas rádios do Reino Unido. Mas foi com o livro que descobri que ele começou a carreira em rádio nos Estados Unidos, país que morou alguns anos na juventude ou como ele conheceu a companheira da vida, Sheila em um programa de TV. Fica claro que a paixão de Peel pela música fez com que ele movimentasse toda uma indústria, já que ele descobriu os principais nomes da música das décadas de 70, 80 e 90 e comecinho dos anos 2000. O livro mostra o quão importante foi ele ter dado espaço para esses “novos artistas” no horário nobre da BBC Radio 1 e BBC Radio 4.
O livro é uma autobiografia, até certa parte, já que ele faleceu em 2004 de maneira inesperada, antes de finalizar o registro. Depois disso, a esposa Sheila assumiu a tarefa de contar em detalhes a vida do companheiro e o resultado é incrivelmente bem contado. Dá pra sentir que eles eram muito próximos. Histórias incríveis com figuras mais incríveis ainda estão por todos os capítulos de Margrave of the Marshes. Livro essencial para entender como o papel de um curador de música é necessário para criação de fãs e principalmente de ídolos.
Maurício Amendola Assis, jornalista e editor do site Monkeybuzz
The Rap Year Book (2015) – Shea Serrano (texto) e Arturo Torres (ilustração)
Com prefácio assinado por Ice-T e ilustrações magníficas de Arturo Torres, The Rap Year Book é uma viagem, comandada por Shea Serrano, pelas canções de rap (dos Estados Unidos) mais emblemáticas de cada ano, desde 1979. Além de ser leitura das mais prazerosas, o livro, que vai de Grandmaster Flash a Drake, de Rakim a Kanye West, cria uma paisagem geral do desenvolvimento (sonoro, lírico e estético) do hip hop – do início da cultura ao status de megapotência de mercado. A escrita ágil, divertida e apaixonada de Serrano é a cereja do bolo de uma jornada que demonstra como o rap, há mais de 40 anos, se reinventa em novas possibilidades e, ao mesmo tempo, resguarda uma essência inabalável.
Marta Karrer, jornalista, criadora de conteúdo e produtora da PWR Records
Um Teto Todo Seu (1929) – Virginia Woolf
A dica de livro musical que eu tenho não é tão estritamente musical, e pode até ser meio clichê hoje em dia, mas foi absolutamente vital para o meu entendimento enquanto mulher criativa e feminista: Um Teto Todo Seu, um ensaio da Virginia Woolf. Ela fala muito sobre a ideia de que para uma mulher escrever ficção, ela precisa de algumas condições básicas: um espaço livre de interrupções (seja um quarto, uma sala) e tempo suficiente para se dedicar à escrita – mas isso tudo não adianta se não houver recurso financeiro e validação social, que é o que falta pra tantas artistas até hoje.
Ler esse ensaio deixou muito claro como é a dinâmica de gênero dentro da indústria criativa, que trata as mulheres como musas ou divas, mas nunca como profissionais e trabalhadoras. Acho que Um Teto Todo Seu moldou o meu trabalho na PWR e na almu também, já que a gente sempre tenta colaborar com os artistas desde o início da criação, tentando proporcionar esse espaço sem interrupções, a validação social e maneiras de arrecadar recursos financeiros para que aquele artista tenha o tempo necessário para criar.
Pedro Antunes, jornalista, editor chefe da Rolling Stone Brasil e apresentador do programa diário Tem Um Gato Na Minha Vitrola:
Mate-me Por Favor (1996) – Legs McNeil e Gillian Mccain
Por anos, tratei Mate-Me Por Favor como minha bíblia pessoal. Levava-o para qualquer lugar, lia e relia. Meus bolsos sempre tinham papéis com anotações de músicas para baixar e estudar sobre alguma das bandas que apareciam pela primeira vez no livro de Legs McNeil e Gillian McCain. O antes, o durante e o depois do movimento que ficou conhecido como punk em forma de história contada por quem viveu tudo aquilo. A tal “blank generation”, deliciosamente apaixonante. Sempre que alguém me pergunta em que época da história eu gostaria de viver, digo que é naquela época do surgimento do movimento punk em Nova York. Tirando a parte do uso e abuso de heroína, speed e outras drogas (quer dizer, vai saber).