Enquanto o samba surgiu como uma expressão das comunidades afro-brasileiras, no contexto dos Estados Unidos, o jazz também foi uma resposta artística do povo negro à Diáspora Africana. Na bossa nova dos anos 1950, esses dois gêneros se encontram e desaguam de incontáveis maneiras, mas — até devido às suas carreiras internacionais — João Gilberto e Tom Jobim alcançaram um patamar de reconhecimento maior do que todos os outros nomes do movimento.
Embora não tenham o mesmo destaque que alguns de seus pares brancos, nomes como Johnny Alf, Alaíde Costa, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Eliana Pittman e Leny Andrade também fazem parte dessa história. Tais artistas deram contribuições importantes e fizeram o possível para resistir ao apagamento promovido pelas estruturas do mercado fonográfico e pelo preconceito racial no país, que privilegiaram a branquitude, muitas vezes “se esquecendo” de citar os negros quando falam da identidade da bossa nova.
Genialf
“Genialf” era como Tom Jobim chamava Alfredo José da Silva, o Johnny Alf. O nome artístico surgiu ainda na adolescência, quando ele começou a se apresentar com seus amigos na Vila Isabel, na capital do Rio de Janeiro. Aos 14 anos já dominava o piano, instrumento que começou a estudar aos nove com Geni Bálsamo, amiga da família para a qual a sua mãe trabalhava como doméstica.
Logo nos primeiros anos de carreira, ele aliou a formação erudita ao interesse pela música popular, sobretudo pelo jazz norte-americano. Nat King Cole era o seu grande ídolo. Em “Rapaz de Bem”, música escrita em 1953 e lançada em 1956, Johnny Alf uniu o jazz ao samba de maneira inovadora: a voz branda que ziguezagueia em diferentes alturas, a linearidade da melodia e a leveza da composição são alguns dos pontos que serviram de base para o que seria produzido a seguir.
“Johnny Alf foi quem começou essa coisa da modernidade na música. Embora tenham outros que fizeram músicas modernas, ninguém fez isso como o Johnny: ele ganhou o primeiro lugar”, diz Alaíde Costa à Noize sobre o papel fundamental do cantor, compositor e pianista.
Uma de suas composições mais famosas, “Eu e a Brisa”, interpretada por Márcia, ficou entre as 36 músicas avaliadas no Festival de Música Popular Brasileira de 1967, mas não avançou à final. À época, a canção chegou às rádios e, com o passar das décadas, foi regravada por Maysa, Tim Maia e Caetano Veloso, entre outros.
Em 2009, Johnny subiu ao palco pela última vez ao lado de Alaíde Costa, em São Paulo. Pouco tempo depois, em 2010, morreu aos 81 anos, e ela o homenageou no mesmo ano com o álbum Alaíde Canta Johnny: Em Tom de Canção, onde deu voz às composições menos conhecidas do amigo.
A Divina
Entre os anos 1930 e 1940, a Era de Ouro do Rádio no Brasil, “Divina” era sinônimo de Elizeth Cardoso. Ela foi uma das representantes do movimento samba canção, que também une o jazz ao samba décadas antes da bossa nova. Em maio de 1958, a convite de Irineu Garcia, dono do selo Festa, Elizeth lançou o álbum Canção do Amor Demais. Ao aceitar participar, ela substituiu Dolores Duran, que cobrou um cachê mais alto do que a verba disponível para o projeto. Além de Divina, outros três nomes chamam a atenção na ficha técnica do disco: Antônio Carlos Jobim, responsável pelos arranjos e composições; Vinicius de Moraes, como letrista e compositor; e João Gilberto, que tocou violão em duas faixas: “Outra Vez” e “Chega de Saudade”.
Na contracapa do disco, Moraes comenta a escolha de trazer Cardoso para Canção do Amor Demais: “Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata.”
Assim, foi na voz de uma das maiores intérpretes que o Brasil já teve que “Chega de Saudade” foi gravada pela primeira vez. Além disso, as famosas batidas no violão de João Gilberto fazem a sua primeira aparição neste disco. Em julho daquele mesmo ano, o artista baiano lançaria uma nova versão da música, repetindo seu papel no violão, mas agora assumindo vocais.
Por mais que esta última leitura de “Chega de Saudade” tenha se tornado uma espécie de “marco inaugural”, Divina também acrescentou um importante tijolo na história da bossa nova.
Turmalina negra
“Eu conheci a bossa nova antes mesmo de a bossa nova ter nome”. É assim que Alaíde Costa dimensiona a sua importância no movimento que, muitas vezes, não soube reverenciá-la.
“Eu fui levada pelo João Gilberto para conhecer um grupo de meninos que estavam fazendo uma música diferente, e que depois veio se a chamar bossa nova”, conta. Essas reuniões eram comuns entre os bossanovistas, que se encontravam em apartamentos da classe média carioca, na zona sul da cidade. A casa da família de Nara Leão, em Copacabana, era um dos pontos de encontro mais populares na época.
Em um desses momentos, Alaíde ouviu pela primeira vez artistas como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, donas de vozes tão potentes quanto a sua. Voz essa que chamou atenção nos principais programas de calouros do rádio brasileiro, entre eles os de Ary Barroso, Paulo Gracindo e Renato Murce antes de Alaíde se tornar crooner na casa noturna Dancing Avenida, em 1955, no Rio.
Quando começou a lançar seus primeiros trabalhos, ela enfrentou resistência da parte das gravadoras, que queriam convencê-la a cantar samba em vez de bossa nova, porque, na visão da indústria, esse era o gênero musical no qual havia espaço para mulheres negras. Apesar de encontrar algumas portas fechadas, ela se manteve fiel ao que acreditava e seguiu no mercado.
Entre 1970 e 1980, foram poucas as suas aparições no mundo da música. A mais importante delas veio em 1972, quando foi a única voz feminina a participar do disco Clube da Esquina, de Lô Borges e Milton Nascimento, que era próximo a ela e para quem dedicou o álbum Alaíde Costa Canta Milton – Amor Amigo (2008).
Nas décadas seguintes, ela acumularia mais de 20 discos em 70 anos de carreira. O último deles, O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim (2022), evidencia como a geração atual da música reconhece a sua longa trajetória. Nele, há letras escritas especialmente para ela, feitas por artistas como Tim Bernardes, Céu, Nando Reis e Emicida, que também assina a produção do trabalho junto a Marcus Preto.
“Demorou 70 anos”, reflete. “Eu me sinto confortável em dizer que graças à minha persistência em manter o que eu queria para mim, musicalmente, no final da vida fui reconhecida”, diz Alaíde.
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Elza pede passagem
Assim como a indústria fonográfica tentou interferir na carreira de Alaíde Costa, isso também aconteceu com Elza Soares. Em 1960, ela lançou seus dois primeiros trabalhos pela Odeon: Se Acaso Você Chegasse, que trazia logo na capa a expressão “a bossa-negra”, e meses depois, compartilhou outras 17 faixas no LP A Bossa Negra.
Esse início de carreira demonstra como houve uma tentativa de separar a artista da bossa nova “oficial”, aquela que não precisava de um indicativo demarcando sua branquitude. No encarte da reedição de A Bossa Negra, que saiu pela Dubas em 2003, Elza compartilha: “[…] o disco nasceu por causa do Ronaldo Bôscoli. Na época ele escrevia para a revista O Cruzeiro. Ele achou que eu seria uma figura importante, representativa da raça negra, e disse assim: ‘É isso o que eu estou procurando! Você vai ser a representante que a gente tanto buscou! E vamos fazer um disco que vai se chamar A Bossa Negra.”
Nesses primeiros álbuns, Elza já misturou o scat singing do jazz norte-americano à sonoridade do samba de gafieira carioca, criando assim novas nuances para a bossa nova e fincando a sua própria bossa negra na história, apesar da investida de colocá-la em uma única categoria por uma questão mercadológica. Cantando até o fim, Elza ainda passaria por diversos gêneros, como rock, soul, eletrônico e hip hop, mas sua bossa negra sempre esteve presente.
Os ecos lá fora
Eliana Pittman foi uma das responsáveis por tornar a bossa nova conhecida no exterior. Em 1963, enquanto o movimento explodia no Brasil, ela já havia gravado News From Brazil, Bossa Nova! com o seu padrasto e “pai artístico” Booker Pittman, importante saxofonista norte-americano.
Para Eliana, esse processo foi mágico. O que começou com uma apresentação na NBC, um dos maiores canais da TV norte-americana, logo ganhou uma proporção maior. “Ficamos 64, 65, 66, até o final de 67 nos Estados Unidos, cantando e divulgando a bossa nova brasileira”, diz a Noize.
Em 1967, ela se reconectou com as suas raízes brasileiras ao gravar o samba-enredo “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, que naquele ano deu o título de campeã, no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, à Estação Primeira de Mangueira. Esse movimento, de se afastar da bossa nova pela qual se tornara conhecida, foi algo ousado para a época.
“Na década de 1960, isso era pecado, era heresia. Uma pessoa que cantava bolero só cantava bolero; samba-canção, só samba-canção. Mas com a influência de Booker Pittman, que era uma pessoa totalmente musical, eu não seguia essa regra”, afirma Eliana.
No fim da década, Booker descobriu que estava com câncer de laringe, o que os fez voltar para o Brasil. Esse foi o momento em que ela pensou que abandonaria a música, mas recebeu o incentivo de seu padrasto para que seguisse a carreira artística sozinha quando ele morresse, conselho que Eliana seguiu a partir de 1969.
Sua vontade de experimentar novos ritmos ainda a levou ao carimbó, em 1974. No álbum Tô chegando, Já Cheguei, gravou duas canções do paraense Pinduca em uma única faixa: “Sinhá Pureza / Carimbó do Mato”. Com mais alguns álbuns lançados até meados dos anos 1980, Eliana entrou num hiato de quase duas décadas, voltando apenas aos estúdios em 2019, com Hoje, Ontem e Sempre. Em seu último trabalho, Canções de Elizeth (2021), ela regrava as músicas de uma de suas maiores inspirações, Elizeth Cardoso.
Além de Eliana Pittman, Leny Andrade foi outra artista negra ligada à bossa nova com projeção internacional. Como Pittman, Leny aprendeu piano clássico ainda na infância e, do mesmo modo que Alaíde, também se apresentou no rádio em programas de calouros durante a adolescência.
A gravação de seu primeiro álbum, A Sensação (1961), aconteceu quando Andrade tinha menos de 20 anos. Nas 12 faixas do disco, nota-se a influência que o samba canção teve na sua maneira de cantar, sobretudo aos moldes de Dolores Duran. O scat singing, uma de suas características enquanto intérprete, é outro elemento que já aparece nesse trabalho.
De 1966 a 1972, Leny morou no México, onde seu álbum Gemini V (1963), gravado ao vivo na casa noturna carioca Porão 73, fez muito sucesso. Na ocasião, se apresentou junto a Pery Ribeiro e o conjunto Bossa Três. Nas décadas de 1980 e 1990, ela se mudou para os Estados Unidos, momento em que se tornou amiga do cantor de jazz Tony Bennett, que frequentava seus shows.
Seja pela sua voz grave, que não se encaixava na abordagem suave da bossa nova, pelo scat singing do jazz ou pela sua potência vocal que ganhava destaque no samba, as gravadoras não gostavam que Leny transitasse por tantos gêneros de uma só vez e tinham como intenção aproximá-la de um único só, o samba. Ainda assim, em toda a sua carreira, ela lançou mais de 30 álbuns. Concorrendo com Zé Ramalho e Gal Costa, em 2007 ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira pelo disco Leny Andrade e Cesar Camargo Mariano — Ao Vivo.
No livro Leny Andrade – Alma Mía (2012), ela comenta sobre a vitória do Grammy traçando uma comparação com o Troféu Raça Negra, que também a condecorou poucos anos depois. Suas palavras ilustram um sentimento pessoal, mas que ecoa de forma representativa para toda uma geração de artistas: “Mas a emoção de ter recebido o Troféu Raça Negra em 2009, da ONG Afrobras, talvez supere a do Grammy. Será? Um reconhecimento pela contribuição do negro para o desenvolvimento do nosso país, para a construção de uma sociedade melhor. Um legado para as próximas gerações. E contribuí com o meu canto e na condição de negra, porque se tenho a pele clara, mamãe era uma mulata que lembrava a Elizeth [Cardoso], então estamos conversados: tenho o pé na África e muito me orgulho disso”.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 148 da revista NOIZE, lançada com o vinil Gilbertos Samba, de Gilberto Gil, em 2023.