A parceria de Lincoln Olivetti e Robson Jorge é revisitada em “Déjà Vu”

05/09/2023

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Isabela Yu

Por: Isabela Yu

Fotos: Reprodução

05/09/2023

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 134 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Sandra Sá, de Sandra Sáem 2023.

Não faltam mitologias para tentar explicar a importância de Lincoln Olivetti na música nacional. O Mago do Pop nacional faleceu aos 60 anos em 2015, e, desde então, os cinco herdeiros se dividem para cuidar do seu acervo. Em um primeiro momento, eles se debruçaram na sua casa no Joá, na Zona Oeste carioca. O casamento de dez anos com a terceira esposa, Rosane Castro Neves, havia terminado em 2007, então Lincoln morou sozinho até o final da vida, mas não só.

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Ele vivia ao lado da sua família de músicos, sempre imerso em ideias, abraçando vários projetos ao mesmo tempo. Na residência, os filhos encontraram os cômodos tomados por equipamentos, cabos, instrumentos, computadores, fitas, discos e todos os tipos de aparatos eletrônicos e musicais. “Equipamentos da década de 1970, que ele jurava que ia consertar, mas nunca fazia. Os amigos mais próximos pegaram alguns instrumentos, e, mesmo quebrado, fiquei com o último teclado dele. Não à toa, papai era meio bruxo: certas coisas só funcionavam nas mãos dele”, lembra Mary Olivetti, filha de Lincoln e da cantora Claudia Olivetti. 

A DJ e produtora musical foi escolhida entre os irmãos para encabeçar a organização do acervo, um processo lento e desafiador porque o arranjador, maestro e tecladista nascido em Nilópolis (RJ) era um notório acumulador. “Fico com essa parte do processo da herança, do que pode ser feito com o acervo, pensando em como podemos usar a criatividade para zelar pela imagem e pelo legado dele”, conta. E foi mergulhando nesses arquivos que ela encontrou composições inéditas que ficaram de fora do disco clássico Robson Jorge e Lincoln Olivetti (1982) e que foram lançadas em setembro. Com o título de Déjà Vu, o lançamento do selo Selva Discos apresenta cinco faixas criadas pela dupla no início dos anos 1980: “Suspira”, “You”, “Dance Baby”, “Sem Essa” e “Batebca”. 

O pontapé do projeto aconteceu há quatro anos, quando Mary esbarrou em uma fita que fez seus olhos brilharem: nela, havia a etiqueta “Babilônia Rock”, música da trilha sonora do filme Rio Babilônia, também lançado em 1982 – ano em que Lincoln assinou 360 arranjos. A princípio, a ideia era ter a versão digitalizada da música, mas como era de costume, o patriarca continuava surpreendendo. Além de encontrar a gravação original de uma das tracks mais clássicas do duo, a DJ escutou pela primeira vez “You” e “Dance Baby”. No estúdio do músico e produtor Kassin, amigo de Lincoln e grande fã e conhecedor da sua obra, Mary teve a comprovação de que se tratava de material inédito. Após permanecer engavetada durante 40 anos, a fita tinha partes deterioradas, então foi necessário um longo processo de restauração e a remasterização do áudio. 

Em um outro momento, enquanto fazia uma limpa no HD com os arquivos dos computadores do pai, a filha encontrou uma gravação de “Me Suspira” na voz de Robson Jorge. Pelo menos desde 2012, Lincoln tocava essa música assinada pela dupla, ao lado do compositor Guto Graça Mello e da percussionista Naïla Skorpio, mas a composição nunca foi lançada. E o nome do arquivo da música no HD não indicava o seu conteúdo, eram apenas letras e números aleatórios. “Parece que escutei ele falando para abrir aquela pasta. A gente tem essa conexão para além da vida, que se manifesta nessas dicas e por meio dos sonhos”, reflete a produtora musical. 

Em outro estalo, ela encontrou “Sem Essa” e “Batebca”, já mixadas, e, por fim, uma anotação com os nomes delas agrupadas em uma ordem específica, que foi abraçada para respeitar a visão do criador. Em paralelo, Mary dedicava tempo a alguns ajustes pontuais, como a regravação da bateria e dos arranjos de metais, seguindo à risca a guia original. O projeto será lançado acompanhado de um disco de remixes, onde diferentes DJs possuem carta branca para reimaginar as cinco faixas. 

Conforme as descobertas aconteciam, ela ligava os pontos a partir dos burburinhos e histórias contadas sobre esse mítico segundo disco da dupla, que o próprio Lincoln desejava finalizar. Com a ajuda da mãe, Claudia, da família do Robson Jorge, e dos amigos do pai, como o produtor musical Max Pierre, ex-diretor artístico da Som Livre, e o saxofonista Leo Gandelman, Mary teve uma segunda confirmação de que essas músicas nunca viram a luz do dia. Para ela, Déjà Vu é um registro histórico e o fechamento de um ciclo: “Não é um segundo volumea gente tem músicas demos, não é uma tentativa de se aproximar da legitimidade e da obra-prima que é Robson Jorge e Lincoln Olivetti. Todos os amigos falavam da vontade dele de lançar esse material”. 

Na longa lista de pessoas que ansiavam ouvir essas músicas estava Augusto Olivani, mais conhecido como Trepanado, DJ e produtor paulistano da festa Selvagem. Desde 2017, ele lança raridades da música nacional pela label Selva Discos, como Brasileira (1988), de Maria Rita Stumpf, então não titubeou quando Mary apresentou a ideia do disco póstumo de dois dos seus ídolos. “Foi uma surpresa tremenda e uma grande emoção, senti que estava diante de um tesouro, porque era algo que corria nos bastidores, mas que o público nunca teve a chance de escutar”, lembra Olivani. 

No início da década passada, a Selvagem acontecia nas tardes de domingo no finado Pari Bar, no centro de São Paulo. Para acompanhar o mood, o DJ privilegiava músicas com até 110 BPM, e de artistas nacionais, especialmente dessa mistura disco, boogie e soul, então “Ginga” e “Baila Comigo”, do disco de 1982, eram usadas para agitar a pista. Apesar de cada um ter a sua própria carreira consolidada, é palpável a cumplicidade entre Robson e Lincoln, havia uma magia nesse encontro: “Tinha um ziriguidum, uma bossa, um molho diferente, uma fluidez absolutamente natural entre eles”, aponta o DJ. 

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As faixas nunca lançadas são de um período importante na trajetória de ambos: após se conhecerem nos estúdios da gravadora CBS no final dos anos 1970, viviam na crista da onda na virada de década, eles estavam em todos os lugares: na rádio, na televisão e nas lojas de discos. Além de assinarem trilhas de novelas, eles também colaboravam com Sandra de Sá, Rita Lee, Wilson Simonal, Roberto Carlos e Tim Maia, entre muitos outros. A criação do disco conjunto foi natural depois de escrever, tocar e compor para outros artistas. 

Encantando multidões 

A cada ano que passa, Mary e os irmãos recuperam pequenos pedaços do pai, um cara que vivia para a música. “Respeitei o meu tempo de luto, depois me senti pronta para começar a ouvir coisas, transcrever fitas e ver imagens. Nessa minha viagem pela vida e pela obra do meu pai, descobri coisas que, mesmo sendo filha, jamais saberia que eram dele. E isso vai continuar a acontecer porque é uma produção infinita”, reflete a DJ. Além de Déjà Vu, mais dois projetos estão em maturação, e há o desejo de lançar uma biografia no futuro. 

Um deles seria um EP de músicas lentas e românticas, com boleros e valsas criadas na década de 1970. O outro é um registro de uma das suas últimas empreitadas, um disco acompanhado desta superbanda formada por músicos que cresceram admirando o trabalho do arranjador: Kassin (baixo), Davi Moraes (guitarra), Donatinho (teclado), Cesinha (bateria), Marlon Sette (trombone), Lelei Gracindo, José Bigorna (saxofone), Altair Martins, Diogo Gomes (trompete) e Peninha (percussão). “Ele começou a vasculhar os HDs, procurando músicas novas, e foi colocando o que achava na roda”, lembra Kassin, que produziu esse disco junto com o Lincoln e está finalizando essas músicas. Em seu estúdio, eles ensaiaram e gravaram as bases de oito faixas, mas, antes de partir, o arranjador expressou que desejava incluir vocais em duas delas e mais alguns outros detalhes. 

A ideia inicial era fazer um show no teatro do Solar de Botafogo, o que, de cara, não agradou o arranjador. “Ele falou que tinha preguiça de voltar a fazer as coisas como eram, mas que toparia se eu tocasse. Foi uma coisa muito maluca, de uma hora para a outra, as coisas começaram a andar para existir esse show e o disco que a gente acabou fazendo”, diz Kassin. Entre 2011 e 2012, além dessa apresentação, eles também tocaram no Copa Fest, evento de música instrumental do Copacabana Palace, e levaram o show para algumas outras cidades. O setlist contava com algumas músicas do disco com Robson Jorge – “Eva”, “Squash” e “Aleluia” –, covers como “Spinning Wheel”, do grupo estadunidense Blood, Sweat & Tears, e algumas inéditas, como “Suspira”. 

Foi essa mesma turma que, ao lado de Mary, realizou uma homenagem a Lincoln no Rock in Rio em 2015. Em janeiro do ano seguinte, foi lançado o seu último trabalho em vida: “Muita Sorte”, uma parceria com o compositor Rogê para o disco Estratosférica (2016), de Gal Costa. Um artista prolífico, deixou uma vasta produção, além de composições guardadas e um legado brilhante. Não há pressa para vasculhar esse acervo, como a produtora musical explica: “A gente faz quando consegue, eu precisaria parar de trabalhar para viver somente explorando esses arquivos, mas não queremos que vire um business“. Com 20 anos de carreira, a DJ vive com o marido e os três filhos em Amsterdã, na Holanda, onde mantém um home studio. De lá, ela produz trilhas sonoras para lojas, restaurantes e marcas, e pondera bem antes de embarcar em novos projetos, mantendo sempre a serenidade: “Eu não caio de cabeça porque não consigo levar tudo ao mesmo tempo”. 

Em 2021, ela assinou uma versão de “Cor de Rosa Choque” para o primeiro volume do disco Rita Lee & Roberto – Classix Remix. No mesmo ano, fez uma releitura da música “Black Coco”, composição do pai na banda Painel de Controle, em 1978. “Tive um sonho com o papai, ele falava que queria ver o primeiro sucesso dele na minha mão”, divide. Como o original não estava em multicanais, ela decidiu regravar todos os instrumentos e adicionar vocais do cantor pernambucano Barro e da carioca Mahmundi. Recentemente, a faixa foi remixada pelo DJ Marky e pelo duo Nu Azeite

Na última edição do Rock in Rio, em setembro de 2022, ela tocou pela terceira vez no palco New Dance Order e preparou um set recheado de pérolas, entre elas, “Monday”, faixa do Directory, um projeto paralelo da dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti. Ainda que quisesse apresentá-la para o público, Mary optou por esperar mais um pouco: “Fiquei duas semanas trabalhando nela, mas não toquei no final porque ainda não está do jeito que eu quero. Ela é mais underground, então acho que vai colar, mas não agora”. Tudo no seu tempo. 

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05/09/2023

Isabela Yu

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