Elza Soares era figura acolhedora. De Pitty a Renegado, conheça algumas parcerias que ela cultivou até o fim.
O rapper Renegado já havia se encontrado com Elza Soares anteriormente, ela já havia elogiado sua beleza, eles já haviam trocados algumas palavras, mas chegou um momento específico em que o assunto se tornou música, e ele foi convidado para ir à casa de Elza. E aqui vale deixar ele próprio contar o que aconteceu:
“Eu estava indo para a casa dela e pensei: ‘Pô, vou comprar flores, né?’. Comprei um buquezão de flores. Eu tinha mandado [a letra de] ‘Negão, Negra’, falando que eu tinha pensado em fazer aquela música, ela gostou muito.
Aí quando eu cheguei no apartamento dela, eu bati a campainha, aí deu aqueles dois segundos de silêncio que pareciam duas horas, de repente eu escuto a voz dela: ‘Negão, negão, negão’, e ela começando a cantar o refrão. Pra mim, foi como se fosse ela dizendo: ‘Entra’. Eu abri a porta, fui entrando, ela estava no sofá da sala, cantando, e eu comecei a cantar junto, aí ela virou, pediu que eu me sentasse no sofá, e disse:
– Que bom que você está aqui, seja bem-vindo.
– Que honra é estar aqui.
No que ela virou e disse:
– Qual é a minha música que você mais gosta?
– Pô, sou apaixonado por várias, mas ‘Meu Guri’ tem uma relação muito afetiva, pessoal mesmo, de família.
Aí ela começou a cantar ‘Meu Guri’ a cappella pra mim, sentada no sofá da sala. Foi uma coisa transcendental. Eu fiquei emocionado, ela ficou emocionada e isso ficou tatuado de uma forma muito forte em mim”.
Essa história do Renegado é um dos muitos exemplos dessa magia que Elza Soares transmitia quando as pessoas adentravam seu universo.
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Romulo Froés, cantor, compositor e diretor artístico de A Mulher do Fim do Mundo (2015), por exemplo, conta que após uma pré-seleção de canções para o disco, ele, Guilherme Kastrup e Rodrigo Campos foram ao apartamento de Elza no Rio de Janeiro. Nessa época, ela vivia em um amplo apartamento com vista para o mar.
Na hora de bem receber os seus novos parceiros de trabalho, Froés conta que ela foi bem específica nos seus pedidos: “Ela queria servir champanhe e caviar para a gente. Aí eu lembro que tinha um cara lá meio assim: ‘Precisa não, Elza’… E ela falou: ‘Precisa, sim!’. Daquele jeito dela de mostrar quem é que manda. Aí a pessoa do lado dela: ‘Acabou, Elza’… No que ela diz: ‘Acabou, compra mais! Os meus amigos estão aqui’.
Essas histórias ajudam a compor essas nuances da personalidade de Elza. A cantora sofreu muito em sua vida, levou pancada de todos os lados e revidou essas pancadas com a força de uma leoa. Durante muito tempo, seu “pecado” perante o mundo era saber o que lhe fazia bem, era saber o que ela gostava e o que lhe dava prazer. E aí esse prazer pode vir do champanhe, do caviar, das boas roupas ou dos belos namorados que teve.
O “pecado” era a mulher negra da Vila Vintém saber o que era bom e querer o que era bom. Mas ela sabia o que queria e não queria só para si, queria também para os outros. Entre uma série de entrevistas para esse texto, o que mais se ouviu foram as qualidades da Elza amiga, da Elza madrinha, da Elza protetora.
Essa figura ecoou nos últimos anos de vida da artista, que gritava no palco pela liberdade feminina e incentiva as mulheres a denunciarem abusos e violências. Com essa mesma força ela bradava pelos direitos LGBTQIA+ e defendia com veemência a existência de todos aqueles corpos marginais que a sociedade insiste em rotular. Tanto era assim que ela tinha como faixa usual em seu repertório ao vivo a canção “Não Recomendado”, de Caio Prado, com seus versos: “A placa de censura no meu rosto diz / Não recomendado à sociedade / A tarja de conforto no meu corpo diz / Não recomendado à sociedade / Pervertido, mal-amado, menino malvado, muito cuidado / Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado”.
Para Caio, saber que Elza queria cantar uma de suas canções foi um presente. “[Foi] uma alegria de renascimento [ver] uma das maiores intérpretes desse país interpretar uma canção sua que fala de liberdade, que é um grito contra a homofobia, contra a transfobia, a possibilidade de a gente ser o que a gente é. E a Elza tinha essas questões de inclusão, era impressionante uma mulher com mais de 80 anos pegando uma música de outra geração dela. Esse poder da Elza era muito incrível”.
Caio Prado viu o primeiro show em que Elza cantou a sua canção ao vivo e, após uma falha técnica, Elza pediu para repetir a canção. Entre lágrimas, o artista pode ouvir duas vezes na mesma noite sua música ganhar vida na voz rouca e única de Elza. Após o show, em um encontro que ele classifica como “extremamente acolhedor”, Elza lhe disse: “De onde saiu essa música, com certeza tem muito mais”. Para Caio, isso foi uma reafirmação de seu caminho como compositor e cantor. Uma espécie de “amadrinhamento”.
Essa Elza que acolhia e tinha seus afilhados pelas artes é uma imagem que também se repete nos diferentes relatos de artistas que puderam conviver com ela. A baiana Pitty, por exemplo, conta:
“Tive a oportunidade de conhecê-la nos bastidores de um programa e ela me chamou assim: ‘Pitty, Pitty!’, me tratou como se já me conhecesse há muitos anos. E eu me senti assim, como se nos conhecêssemos há muitos anos, mas era a primeira vez que nos encontrávamos pessoalmente”.
Dessa sensação de conforto e intimidade natural nasceu uma amizade que posteriormente virou o single “Na Pele” e virou uma troca bastante constante entre as duas artistas, como Pitty conta abaixo:
“A gente manteve contato durante esse tempo todo, trocando, ela sempre perguntando como eu estava, tinha sempre muita lembrança da Madalena, minha filha. Quando eu fui na casa dela mostrar ‘Na Pele’, a Mada era bem bebezinha. Toda vez que a gente se encontrava e dava pra conversar um pouco, a gente queria saber como a outra estava, papo de amiga, papo de comadre. Era uma amiga muito cuidadosa, afetuosa e amorosa, realmente preocupada com você. Não aquela pessoa que faz uma pergunta retórica: ‘E aí, como você tá?’, e é só uma brecha pra falar de si mesmo, sabe? Ela realmente queria saber como você estava. E isso é muito lindo, muito importante, especialmente nesse mercado que a gente vive, né?”.
Pitty usa a palavra “comadres”, que é uma palavra que usamos geralmente para nos referir a madrinha do filho/a ou a mãe do afilhado/a, mas que coloquialmente se transformou nessa espécie de palavra guarda-chuva para aquelas pessoas que não necessariamente são nossa família, mas o são. Elza teve muitas comadres e compadres pela sua vida, de Chico Buarque e Marieta Severo até uma bela amizade com a atriz Letícia Sabatella, com quem inclusive chegou a compor uma parceria — a canção “A Cigarra”. Das relações afetuosas surgiam auxílios em momentos de dificuldade — como seu contato pessoal e profissional com Caetano Veloso e Cazuza nos anos 80 — ou mesmo parcerias profissionais que foram fundamentais para sua carreira, como seu trabalho sólido ao lado de José Miguel Wisnik, com quem desenvolveu Do cóccix até o pescoço (2002).
E eram desses encontros que surgiam as coisas fulgurantes que ouvimos na voz de Elza. Grande exemplo disso está em A Mulher do Fim do Mundo, no qual a artista viu seu mundo se chocar com o de nomes extremamente criativos como Guilherme Kastrup, Romulo Fróes, Celso Sim, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Thiago França, entre outros. Desse choque, surgiu algo único e, sobre essa experiência, Romulo Froés lembra de seu próprio encantamento ao ver a canção-título do disco encontrar a sua dona.
“Ela acabou de ouvir ‘A Mulher do Fim do Mundo’ e falou: ‘Mas a mulher do fim do mundo sou eu!’. E aí deu um negócio assim, o Kastrup olhou pra minha cara e, a partir daquele momento, o disco já tinha seu nome. Esse verso só teve força quando ela disse isso. Antes, era uma canção, um samba que eu fiz com a Alice Coutinho e tal, mas quando ela disse: ‘A mulher do fim do mundo sou eu!’, esse verso, a canção, tudo saltou para a frente.”
Essa cena aconteceu no mesmo dia em que ela ofereceu champanhe e caviar para “os meninos”, como ela carinhosamente chamava a trupe por trás do disco.
Depois de um tempo, Elza reencontrou seus “meninos” no estúdio em São Paulo, eles já tinham as bases do disco prontas para ela ouvir e aí temos outra dessas cenas que valem ser descritas, como conta Romulo Froés:
“Demos play na primeira música, ela: ‘Ah, bonita, bonita’. Toca a segunda música, ela diz: ‘É, maluco, hein’. Toca a terceira: ‘Ah, vocês são malucos’. Aí toca a quarta, ela fica quieta. Toca a quinta, ela fica quieta. Toca a sexta, e ela diz assim: ‘É, eu vou ter que estudar, vou ter que estudar’. Aí toca a sétima, a oitava, ela fica quieta de novo, até que ela vira pra mim e diz: ‘Mas eu vou destruir!’. Ela logo entendeu que tínhamos ali um disco diferente, e ela fala essas duas coisas: ‘Vou ter que estudar’, e logo em seguida ‘mas eu vou destruir’. Aí ela se entregou ao disco, ela queria gravar, queria fazer vários takes e refazer. Aquele take de ‘A Mulher do Fim do Mundo’, que já estava maravilhoso, espetacular, ela disse: ‘Não, deixa eu fazer mais uma coisa aqui’, aí é quando ela manda aquele final, que diz: ‘Eu quero cantar, me deixem cantar, eu quero cantar’. Ela fez aquele negócio na hora. E eu chorei abundantemente”.
Aos 85 anos, Elza ressurgiu num mar de guitarras e distorções e Romulo ressalta que ela mesmo colocava mais pilha, pedindo para aumentar as guitarras, pedindo som mais alto e barulho no seu entorno.
Na reedição de 2010 da biografia Elza Soares – Cantando para não enlouquecer (1997), o autor José Louzeiro incluiu um texto extra no final que contava um pouco dos problemas de saúde que Elza enfrentou nos anos 2000 após uma grave queda do palco. Ele faz ali uma ficha corrida desses problemas, de como Elza teimava com os médicos, nem sempre obedecia a tudo e às vezes dava seus pulos. Depois disso, ele adiciona: “(…) dos últimos dias de Elza Soares só Deus e o Diabo sabem. Enquanto isso, ela pinta e borda. É ciumenta confessa, mas namora homens mais novos, desde que não pretendam colocar coleiras em seu pescoço. O sonho maior de Elza é a liberdade”.
Os “últimos dias” de Elza viraram muitos outros anos em que Elza exerceu como ninguém a liberdade. Outros namorados vieram, outros amigos surgiram, outras parcerias foram feitas e com isso uma nova Elza nasceu. Uma Elza que mostrou ao mundo suas composições em No Tempo da Intolerância (2023), uma Elza que fez show de música eletrônica, uma Elza que foi celebrada no mundo e que pode ser reverenciada em vida no país que ela tanto amava.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 140 da revista NOIZE, lançada com o vinil de No Tempo da Intolerância, de Elza Soares, em 2023.