No início dos anos 2000, durante frequentes visitas a sebos, o pesquisador e apaixonado por música Ricardo Morais se lembra de começar a ver, estampado em muitos dos discos que ele erguia para olhar, o desenho de um buldogue com uma coleira de espinhos, roupas hippies e carregando uma bigorna. Se tratava do logo da Tapecar, selo e fábrica da música brasileira nos anos 1970 que carregou em seu catálogo títulos de grandes artistas como Elza Soares, Beth Carvalho e Novos Baianos.
O logotipo incomum – e a força dos títulos da gravadora – chamou a atenção de Ricardo, que passou a pesquisar a história da Tapecar. Quando se mudou para o Rio de Janeiro, na metade da década passada, enquanto trabalhava em diversos projetos de música em lugares como o Museu da Imagem e Som e Canal Brasil, Ricardo foi contatado por um familiar que conhecia o dono e fundador da extinta fábrica, Manuel Camero, o Manolo.
“Eu queria, na verdade, fazer uma entrevista com ele como pesquisador, mas nesse meio tempo, o Manolo faleceu”, conta Ricardo em entrevista à Noize. Mas a história não acaba nessa triste nota. Sabendo do interesse de Ricardo, a filha de Manolo, Rossana, entrou em contato e o chamou para trabalhar na reestruturação da Tapecar. Em 2021, após dois anos de organização interna, a empresa reabre suas portas como fábrica e selo musical.
A história da Tapecar enquanto selo, já terminada há quatro décadas, se resume a praticamente só uma: ele foi fundado em 1971 e fechou as portas em 1981. Mas a empresa já funcionava desde 1968, quando Manolo fundou a fábrica, inicialmente apenas para a produção de cartuchos e tapes para carros. Na época, o jornal Correio da Manhã noticiou a chegada dos equipamentos que fariam parte da “maior gravadora de cartuchos estéreos instalada fora dos Estados Unidos”, que garantia que o Brasil pudesse deixar de importar cartuchos e passasse a produzir “10 mil unidades diárias para a Philips, RCA, etc”.
Além disso, os pais de Manolo – espanhóis que imigraram para o Brasil em 1936, quando o filho tinha um ano de idade – eram donos da loja Auto-Tape, de discos e produtos musicais. Localizada em Botafogo, ao lado da casa de shows Canecão e do hotel Solar da Fossa, a loja se tornou um ponto importante para os jovens antenados em som na época. Encantado pelo contato com o mundo da música, e ciente do potencial do negócio, Manolo importou prensas e transformou a Tapecar em selo para licenciar o catálogo da emergente gravadora norte-americana Motown Records.
Ainda no começo de sua história, a Motown foi uma aposta certeira de Manolo. Seu primeiro lançamento foi a coletânea Som Ecodinamic (1970), produzida por Paulinho Corrêa com fonogramas da Motown, que trazia sucessos de Marvin Gaye, Supremes, Jackson 5, Edwin Starr e Stevie Wonder. Essa coletânea virou uma série com três edições e foi muito importante para espalhar a black music dos EUA no Brasil.
Após o sucesso dos primeiros licenciamentos do selo, Manolo se virou para artistas brasileiros e para sua verdadeira paixão: o samba. “O Manolo era um fã de samba, né? Ele ia nas feijoadas, ele se envolvia com os compositores, com os cantores”, fala Ricardo. “Eu acho que ele pensou a empresa muito ligada a essa questão da cultura negra, emergente naquele momento.”
Pela relação próxima de Manolo com os artistas, a Tapecar lançou grandes títulos e se tornou importante peça-chave na carreira de muitos nomes do samba, tanto emergentes quanto já consolidados. O selo se tornou casa da já grande Elza Soares após ela deixar da Odeon descontente com o cerceamento criativo da gravadora, e foi na Tapecar que ela lançou quatro de seus discos mais clássicos:
Elza Soares (1974), Nos Braços do Samba (1975), Lição de Vida (1976) e Pilão + Raça = Elza (1977). Beth Carvalho, em seus primeiros anos de carreira, também fez quatro discos pela Tapecar. Novos Baianos, Bezerra da Silva, Candeia, Zé Dino, Xangô da Mangueira e Partideiros do Plá foram alguns dos artistas que também trabalharam com o selo.
“Acho que o principal fator de destaque da Tapecar foi ter seguido um estilo genuinamente brasileiro”, aponta Ricardo. “Ela soube desenhar sua história dentro do repertório extremamente popular, acessando diversas manifestações – desde o samba até discos de candomblé, de umbanda; muito repertório de carimbó, de brega. É um DNA muito particular da gravadora”.
Além da relação próxima com os artistas, Manolo também era conhecido pelas histórias curiosas e excêntricas que cercavam seu trabalho com o selo. “O Gilson de Souza chegou na Tapecar sem ter gravado um disco. Meu pai pediu para ele cantar batucando com a mão. O Gilson cantou e imediatamente o Manolo falou com o maestro Wilson Mauro para trazer a orquestra no dia seguinte, para gravar o disco de um artista ainda inédito”, relembra Rossana. “Também tem a história do Manolo indo atrás do Chacrinha para lançar a dupla Tom e Dito. Era um trabalho com muito suor.”
O selo era o grande chamariz da Tapecar nos anos 1970, mas a fábrica também funcionava a todo vapor, prensando sob encomenda discos de muitos artistas e gravadoras independentes. Os mais notáveis foram os dois volumes do Racional, e todos os outros lançamentos do selo Seroma, criado por Tim Maia em 1972 e, mais tarde, rebatizado de Vitória Régia Discos. Em 1978, a Tapecar fechou um acordo com a Som Livre e passou a ajudar na produção dos discos da gravadora.
Em 1981, após dificuldades financeiras e administrativas, Manolo fechou as portas do selo Tapecar e criou um sucessor, a Aycha Discos, que não obteve sucesso e faliu no mesmo ano. Em 1983, ele vendeu a fábrica da Tapecar para a gravadora Continental e tornou-se presidente da gigante multinacional RCA, continuando a exercer um papel importante na indústria fonográfica.
A história da Tapecar permaneceu pausada até que Rossana, com a ajuda de Ricardo, decidiu revivê-la em 2019, dois anos após a morte de seu pai. Foram dois anos de trabalho jurídico e catalogação para conseguir e disponibilizar o acesso aos fonogramas lançados pela gravadora nos anos 1970, que tinham se espalhado entre diversos outros selos após seu fechamento. A vontade de reabrir a gravadora veio, segundo Rossana, para “manter de alguma forma a memória da música brasileira, do samba, desses artistas, compositores, músicos e intérpretes. E, claro, pela vontade de seguir a história construída lá atrás pelo meu pai”.
O primeiro relançamento físico será o do disco de Elza Soares em parceria com o Noize Record Club, mas Ricardo e Rossana adiantam que muita coisa está por vir. A digitalização e disponibilização nas plataformas de streaming de todo o catálogo do selo é a prioridade número um para a Tapecar, que já começou a trabalhar para garantir que alguns de seus lançamentos possam ser ouvidos online após tantos anos – como o disco de estreia de Gilson de Souza, Pôxa (1975), o primeiro a ficar disponível. Mas os lançamentos em vinil, tão importantes para a formação do selo, também vão continuar.
“A melhor maneira de atingir o máximo de pessoas nesse momento da indústria é nas plataformas digitais, sem dúvidas”, fala Ricardo: “Mas os discos de vinil vêm retornando. Principalmente após o início da pandemia, o mercado cresceu muito. O vinil é importante, atinge um público fiel, que escuta, que influencia, mas o grande público a gente sabe muito bem que está nas plataformas digitais, né? Então, as duas coisas vão caminhar juntas”.
Apesar dos 40 anos de pausa, Ricardo garante que as prioridades da Tapecar não mudaram: a música negra e a música popular brasileira, muitas vezes sinônimos, são prioridade para o selo. “Se você reparar, é desde o logo: o buldogue continua, foi apenas redesenhado, veio pro mundo digital, mas o branding da marca é muito próximo do que era antes”, diz.
Honrar a memória de Manolo, sua visão do mercado da música e a história da gravadora são a força motriz do retorno da Tapecar, segundo Ricardo. “O que uniu a minha trajetória com a Rossana foi a paixão: no caso dela, a paixão extremamente afetiva, de sua infância, adolescência, sua relação com o pai. E, do meu lado, foi encontrar essa mesma paixão pela história da gravadora, porque eu sou um apaixonado por música. O que nos moveu foi totalmente a paixão pela música e pela memória do Manolo”.