Elza Soares, a maestra do impossível

07/01/2025

Powered by WP Bannerize

Avatar photo

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Arquivo Nacional, Rafael Rocha/Reprodução

07/01/2025

Seu Avelino era um homem simples, severo e sensível. Bebia com moderação e gostava de tocar violão. Na favela carioca de Moça Bonita, hoje chamada de Vila Vintém, ele se casou com Rosária, que, na década de 1920, havia se mudado para lá vinda de Ubá (MG). Quando chegou, ela tinha 16 anos. Rosária veio com o padrasto Antenor, a mãe Cristina e a avó Henriqueta. No Rio, casou-se primeiro com Manoel, com quem teve duas filhas, Matilde e Malvina. 

Ela já era viúva quando conheceu Avelino, um ex-ativista político que apareceu de repente perto de sua casa. Com ele, teve cinco filhos: Avelino, Georgina, Carmen, Alice (filha de criação do casal) e Elza Soares, nascida em 1930. A vida da família não tinha luxos, mas a música era constante. Avelino (pai) era amigo de músicos como Kid Pepe e costumava tocar reunido com eles. Avelino (filho), que daqui em diante será chamado pelo apelido de Ino, também tinha o costume de tocar violão; já Antenor, uma harmônica trazida de Minas Gerais. Desde muito pequena, Elza sempre adorou vê-los tocar e essa vivência foi uma de suas primeiras referências musicais. 

*

Quando Avelino conseguiu emprego em uma pedreira no bairro de Água Santa, a família se instalou por lá. Rosária trabalhava como lavadeira, o que continuou fazendo por muitos anos com ajuda das filhas. Além de levar marmitas para o pai no serviço, Elza acostumou-se a carregar quilos de roupas em latas equilibradas na cabeça para ajudar a mãe. Foi fazendo isso que aprendeu a cantar e a fazer o scat e a vibração gutural que viraram suas marcas registradas. 

Essa técnica vocal seria popularizada por um dos pais do jazz, Louis Armstrong. Muito tempo depois, Elza viria a conhecer o músico (inclusive pessoalmente), mas, nos anos 1940, ela não sabia o que era o jazz e não fazia ideia de quem era Louis Armstrong. Trabalhando duro durante a infância, ela inventou por conta própria seu jeito de emitir sons vibratórios roucos com a garganta enquanto cantava. Surgia assim uma ferramenta com a qual Elza iria reconstruir toda sua vida e, mais do que isso, demarcar um território de luta na música popular brasileira.

Uma estrela faminta 

Em 1953, Elza estava casada com o primeiro marido, cujo apelido era Alaordes, em uma relação marcada pela violência em todos os sentidos. O casamento foi forçado pelo pai dela, que viu o jovem atacando sua filha quando ela tinha apenas 12 ou 13 anos (as fontes variam). Após dez anos de relação, Elza tinha tido cinco filhos, sendo que dois deles já haviam morrido prematuramente. A vida com Alaordes era muito difícil, pois, além de não haver amor entre eles, o marido era agressivo, ciumento, viciado em jogos de cartas e incapaz de manter uma vida profissional saudável. Pra piorar, não aceitava que Elza seguisse o sonho de ser cantora. 

Pensar em ter uma carreira artística bem-sucedida é um plano desafiador por si só, mas, para uma jovem negra moradora de uma favela carioca no começo dos anos 1950, a ideia parecia impossível. Elza precisava alimentar sua família, e para isso teve vários empregos fora da música, indo de empregada doméstica a assistente em hospital psiquiátrico, mas nenhum deles durou muito tempo. Sempre que ouvia uma cantora no rádio, Elza ficava pensando em como faria para que fosse sua a voz saindo do aparelho. 

Em outubro de 1953, ela descobriu um jeito. “Eu sempre fiz o que eu tinha vontade de fazer, mas não tive o incentivo de ninguém”, declara Elza Soares em entrevista à Noize. Escondida do marido, inscreveu-se no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi. O concurso pagava um bom prêmio aos candidatos, que estava acumulado há semanas. “Menina, de que planeta você veio?”, perguntou o apresentador vendo Elza subir ao seu palco magérrima. Ela vestia de forma desajeitada as melhores roupas que pôde, que eram da sua mãe e estavam presas por vários alfinetes pra não caírem do seu corpo franzino. A intimidação aos calouros fazia parte do programa e, nesse momento, o auditório inteiro ria alto de Elza. Mas as risadas calaram quando ela respondeu prestes a chorar de raiva: “Do seu planeta, seu Ary. Do planeta fome”. 

Esse encontro entre Elza Soares e Ary Barroso rendeu um dos diálogos mais emblemáticos da história da música brasileira. Autor de “Aquarela do Brasil” e mais de 200 outras composições, Ary Barroso é muitas vezes nomeado como o maior compositor popular do país. Sua obra teve um papel fundamental no processo de elevação do samba ao posto de símbolo da identidade nacional a partir dos anos 1930. Foi um dos pioneiros do jazz no Brasil, o artista mais gravado por Carmen Miranda e o primeiro brasileiro a concorrer ao Oscar, em 1945. Trabalhou com Walt Disney, foi o segundo vereador mais votado do Rio em 1947, revolucionou a locução esportiva no país, foi decisivo para a construção do estádio do Maracanã… Enfim, a lista de seus feitos segue.  

E assim como a linhagem materna de Elza, Ary Barroso também veio de Ubá para o Rio. Mas enquanto Elza conta que sua bisavó Henriqueta e sua avó Cristina foram mulheres escravizadas, Barroso era filho de um deputado estadual de Minas Gerais e sobrinho de um Ministro da Fazenda, que, quando morreu, deixou uma herança para ele. Apesar de ter vindo da mesma cidade de sua família, ele com certeza não vinha do mesmo planeta que Elza. 

Quando Ary Barroso nasceu, em 1903, a escrivadão havia acabado no Brasil há apenas 15 anos. Em 1953, ele era um senhor que, independente de seu imenso talento, querendo ou não, representava os privilégios da branquitude colonial. Elza Soares encarnava o oposto: era uma jovem pobre, fruto das primeiras gerações de negros brasileiros nascidos de ventes livres, que arriscava a vida enfrentando o racismo, o machismo e a fome para entrar no meio musical. 

As engrenagens da história do Brasil estavam se movimentando naquele palco. Na sua primeira apresentação em público, Elza cantou um samba muito triste chamado “Lama” e a sua interpretação avassaladora lhe fez vencer o concurso e levar pra casa o prêmio acumulado. “Senhoras e senhoras, nesse momento acaba de nascer uma estrela!”, comemorou Ary Barroso, abraçando emocionado a artista que ele não imaginava que veria ali.

A bossa negra

Em meados dos anos 1950, Ino tocava com o maestro Joaquim Naegele. Por indicação do irmão, Elza fez um teste e foi tão bem que assumiu o papel de crooner, a responsável pela voz principal do conjunto do maestro, a Orquestra Garam de Bailes. Ali, começou de fato sua trajetória artística, foi quando passou a cantar em público com certa frequência e a ganhar por isso. Ela e o grupo estavam em uma crescente quando Elza engravidou pela última vez de Alaordes e precisou interromper a carreira que mal havia começado. 

Mas assim que pôde, voltou aos palcos. Cerca de 1956, conheceu a bailarina, coreógrafa e produtora Mercedes Baptista e passou a fazer parte de um espetáculo dela com Grande Otelo, que logo virou seu amigo. Com Mercedes, Elza fez, em 1958, sua primeira viagem internacional, passando mais ou menos um ano na Argentina. Lá, conheceu e foi aplaudida por Astor Piazzolla e deu uma série de entrevistas à imprensa, o que lhe ajudou a montar um portfólio na volta ao Brasil.

Quando chegou, encontrou oportunidades para cantar em algumas rádios, onde ficou amiga do sambista Moreira da Silva. Ele a apresentou à equipe do Texas Bar, em Copacabana, e logo a casa noturna contratou Elza para cantar lá todas as noites. Sua família desaprovava a profissão, especialmente seu marido, que a essa altura estava internado tratando uma tuberculose crônica. Certa noite, Alaordes apareceu de surpresa, armado, reclamando da carreira de Elza. Antes que ela pudesse argumentar, ele deu dois tiros nela, sendo que um deles atingiu o braço dela de raspão. O casamento foi marcado pela violência do início ao fim: Elza diz que essa foi a última vez que viu o marido, morto em 1959.

Naquele momento, nascia a bossa nova no Brasil e diferentes empresas da indústria fonográfica atuavam no país em busca de novos talentos. Encantado com os shows de Elza Soares no Texas Bar, o compositor Aldacir Louro sugeriu com muito entusiasmo o seu nome para ser contratada pela RCA Victor. Porém, a gravadora recusou-a por ser negra. A postura da RCA Victor hoje seria tratada como o crime que é, mas, na ocasião, Elza encarou isso como apenas mais uma das muitas atrocidades que já tinha sofrido. Na época da Orquestra Garam de Bailes, ela chegou a ser proibida de subir ao palco em alguns shows (aliás, antes de ser aceita na orquestra, alguns músicos se opuseram à sua entrada dizendo que a cor da sua pele atrapalharia o conjunto). Até agressões físicas ela sofreu nesse período, como quando botaram uma gilete por dentro de sua roupa sem que ela visse. 

Uma força sobre-humana permitiu que Elza seguisse em frente. Sua primeira oportunidade de gravar veio através de Moreira da Silva, que arranjou um estúdio para ela registrar “Pra que é que pobre quer dinheiro?” e “Brotinho de Copacabana”. O disco saiu pelo selo independente Rony em 1959, mas não ficou conhecido e segue praticamente esquecido até hoje. Tudo mudou quando a cantora Sylvia Telles apareceu no Texas Bar e apresentou Elza aos executivos da Odeon. No dia seguinte, lá estava Elza no estúdio da gravadora registrando quatro faixas: “Edmundo (In The Mood)”, “Era Bom”, “Mack The Knife – Assalto” e “Se Acaso Você Chegasse”. Essas músicas saíram em compactos e a boa recepção do público garantiu a Elza o contrato para lançar, em 1960, seu LP de estreia, Se Acaso Você Chegasse, que estourou. 

Começava assim a relação com a gravadora onde ficaria até 1974. Em 14 anos de contrato com a Odeon, Elza lançou nada menos que 17 LPs e ao menos 39 compactos (contando lançamentos em países como Portugal, França, Argentina e África do Sul). A Odeon era uma das maiores empresas do ramo e, inicialmente, a parceria foi muito frutífera. Através dos seus títulos, Elza tornou-se uma cantora muito famosa, passando rapidamente do anonimato para uma rotina de shows e apresentações constantes na mídia.

A negritude e as dificuldades da vida das pessoas marginalizadas no Brasil foram temáticas recorrentes desde o começo da carreira de Elza. Seu primeiríssimo lançamento independente já trazia uma aguda crítica social em “Pra que é que pobre quer dinheiro?”. No LP de estreia pela Odeon, ela anuncia na faixa “Nêgo Tu…Nêgo Vós…Nêgo Você…”: “Pois se o caso é pele escura a minha é também”. 

No mesmo ano em que João Gilberto, que era fã e amigo de Elza, fazia sucesso cantando temas singelos como “O Barquinho” e “Trenzinho”, Elza lançava seu segundo disco com o sugestivo nome de A Bossa Negra (1961). No terceiro LP, O Samba é Elza Soares (1961), ela sorri na capa, mas canta, em “Cantiga do Morro”, versos como: “Vem aqui meu senhor, venha ver / Minha gente do morro sofrer / (…) Vê bandido em qualquer morador / Não vê pai, não vê mãe, nem avô / Ninguém nos vê como gente e assim / Só vê o que há de ruim / O morro está cansado / De trabalhar e não ter / Vem ver meu senhor, venha ver / Sem nem culpa esse povo morrer”. 

No quarto álbum, Sambossa (1963), ela diz: “Não fala com pobre / Não dá mão a preto / Não carrega embrulho / Pra que tanta pose, doutor?”, em “A Banca do Distinto”. E exemplos desse tipo repetem-se nos álbuns seguintes, como pecinhas de um mosaico que mostra por que Elza é até hoje um dos maiores nomes da luta antirracista. “Eu venho nessa luta eterna, de lutar contra a escravatura, lutar pela negritude, lutar pela mulher. A gente luta sempre”, declara Elza. 

Sangue, suor e raça

Em 1962, quando se apaixonou por Garrincha, Elza precisou lutar ainda mais. Sua relação nunca foi aceita por parte do público e da mídia e o casal foi muito perseguido. Por um lado, teve uma questão política. Elza gravou um jingle para João Goulart em 1963 e, em 30 de março de 1964, ela se apresentou no fatídico evento em que Jango fez seu último discurso, na véspera do golpe militar. Meses depois, agentes do DOPS invadiram a casa de Elza e Garrincha, revistaram eles nus contra a parede, reviraram tudo e ainda mataram um passarinho do jogador. A cantora sempre disse que, apesar da amizade que teve com Jango e Juscelino Kubitschek, ela nunca foi uma militante ou ativista de um grupo político específico. Independente disso, era nítido o teor contestatório de sua obra. 

Além da Ditadura Militar, havia uma pressão civil. Por anos, Elza e Garrincha foram agredidos e ameaçados de várias formas. Provavelmente, havia muito racismo por trás do ódio a esse casal de jovens negros, bonitos, talentosos e que ocupavam posições de destaque absoluto em suas carreiras. Mas não deve ser menosprezado o moralismo calhorda das pessoas que condenavam Garrincha por ter deixado a esposa anterior para ficar com a cantora e demonizavam a cantora por assumir esse papel. Além disso, a mídia nacional investiu muitas pautas, cobrindo de modo sensacionalista cada boato ao redor do casal, o que dava audiência e inflamava ainda mais o público. “A mulher independente assusta. Eu sempre fui independente, devo ter assustado muita gente”, diz Elza, que garante: “Nunca tive medo de nada”.   

Mas chegou um ponto em que ela e Garrincha começaram a sofrer ameaças cada vez piores. Ligações com ameaças viraram rotina. Em 1969, um carro fechou o veículo em que eles estavam e houve uma tentativa de sequestro, que não deu certo. Alguns ataques à casa deles já haviam acontecido, mas a situação chegou ao cúmulo com um atentado em que vários tiros foram disparados e o segurança do casal foi ferido. A gota d’água veio em seguida: um bilhete anônimo que alertava que Elza e Garrincha tinham 24 horas para sair do país. “Ali, eu entendi que eu era importante. Porque, se eu não incomodasse, não tinham feito nada comigo, né? Mulher, negra, decidida. Fizeram isso porque eu incomodava”, disse Elza a Noize em 2016.

Em 23 de janeiro de 1970, o casal foi para a Itália, de onde só voltaria em 10 de dezembro de 1971. “Tive que ir embora, fiquei escondida com o Mané. O Chico Buarque e a Marieta Severo foram os meus grandes amigos quando eu morava em Roma”, conta a artista. Lá, através de Naná Vasconcelos, Elza conheceu a grande Ella Fitzgerald e até a substituiu em alguns shows. Também gravou um compacto com a RCA Victor italiana, com versões em italiano de “Máscara Negra” e “Que Maravilha”. Esse disco ajudou a marcar shows na Europa, mas criou um atrito com a gravadora Odeon, com quem Elza mantinha contrato no Brasil. 

Não era a primeira vez que a Odeon encrencava com os voos internacionais da cantora. Em 1968, quando tocou pela primeira vez em Nova York, Elza conheceu um executivo de uma gravadora dos Estados Unidos focada em artistas negros que lhe convidou a ficar lá e trabalhar com ele. Ela não lembra ao certo qual gravadora era essa, mas especula-se que fosse a própria Motown. Ela até queria aceitar o convite, porém a Odeon não permitiu, pontuando que seu contrato lhe obrigava a gravar muitos outros discos no Brasil.   

Quando voltou da Europa, a relação com a gravadora estava bem estremecida. A Odeon reclamava que os discos de Elza não vendiam tanto como antes, já a cantora reclamava que a Odeon não deixava ela diversificar sua sonoridade e seu repertório. De fato, ouvindo os discos dessa fase, nota-se que até mesmo algumas músicas se repetem. “Se Acaso Você Chegasse”, por exemplo, foi gravada em quatro LPs diferentes. 

Os últimos discos dela na Odeon já são mais arejados, flertando com novos sons e mostrando uma Elza mais livre da figura de diva do samba jazz, que havia sido criada para ela no início dos anos 1960. Mas o final da relação foi conturbado. Em 1971, ela descobriu que o repertório que seria do seu próximo disco havia sido repassado para Clara Nunes (que a própria Elza havia apresentado para a Odeon anos antes). 

O pior episódio veio em 1972, quando Elza propôs à gravadora fazer um disco ao lado de Roberto Ribeiro. Primeiro, a Odeon não queria trazer o cantor, alegando que era um nome desconhecido. Após ceder e gravar o álbum, a empresa tentou impedir que ele estivesse na capa. Elza conta que ouviu declarações racistas dos executivos na ocasião e que teve uma grande discussão por causa disso. No fim, o disco saiu com o título de Sangue, Suor e Raça e foi um sucesso. Desde que voltou da Itália até 1974, quando rompeu com a Odeon, Elza lançou três LPs e nove compactos, até que conseguiu mudar de gravadora. “Mudei. Toda vez em que eu não me sentir bem no lugar em que estou, eu vou mudar. Mudei”, sentencia Elza.

Não é hora de tristeza

O novo lar dela foi a Tapecar, selo que teve uma atuação importantíssima para a música negra no Brasil. Naquele momento, a cantora lutava muitas frentes ao mesmo tempo. Pessoalmente, sofria para manter seu casamento com Garrincha, que, a essa altura, vivia um processo dificílimo de depressão e alcoolismo. Profissionalmente, corria atrás para garantir seu espaço no cenário artístico em um momento de efervescência da música popular brasileira. “Mulher é isso, consegue cuidar de várias coisas ao mesmo tempo. O meu tempo deu pra tudo isso”, diz Elza.

Em 1974, a cantora não descansou. No início do ano, fez uma série de shows no Teatro Opinião, participando do projeto Noitada de Samba. No carnaval, cantou o samba-enredo “A Festa do Divino” no desfile da Mocidade Independente. Em maio, Elza e Garrincha inauguraram o La Boca, restaurante e casa de shows que, por problemas administrativos, funcionou por poucos meses e gerou várias dívidas. Em junho, ela deixou a Odeon e, já em agosto, veio seu primeiro lançamento pela Tapecar: “Salve a Mocidade”. A faixa foi incluída na novela da TV Globo O Rebu e saiu no LP da trilha, lançado pela Som Livre, mas também em dois compactos da Tapecar, um deles com “Falso Papel” e outro com “Pranto Livre”, “Meia Noite Já É Dia” e “Louvei Maria”.   

Todas essas músicas, exceto “Salve a Mocidade”, fizeram parte do seu primeiro LP na Tapecar: Elza Soares (1974). Quem produziu e arranjou o álbum foi o maestro do sambalanço Ed Lincoln, que trouxe sua banda primorosa para acompanhar a cantora. “Trabalhar com o Ed Lincoln foi uma coisa de louco, muito bom. Os músicos maravilhosos, os arranjos sensacionais”, diz Elza. 

Com ganas de renovação, a cantora formou o repertório do disco com músicas inéditas, a única que não era foi “Quem Há Dizer”, de Lupicínio Rodrigues. Quanto à sonoridade, o LP marca a desassociação do som que ela fez por tanto tempo na Odeon. Nele, há diversos tipos diferentes de samba, do mais carnavalesco (“Bom Dia Portela”) ao samba rock (“Partido do Lê Lê Lê”), além de “Deusa do Rio Niger”, um tema sobre Iansã que soa quase como um funk ijexá.

“Louvei Maria” também merece destaque, pois é uma das poucas composições próprias que Elza gravou. “Eu não tinha tanta vocação”, diz a artista justificando o motivo de não ter escrito mais canções: “Sei lá, eu cantava o que vinha na cabeça, o que dava vontade de cantar, as composições boas dos compositores, era isso”. Apesar da modéstia dela, a letra forte de “Louvei Maria” demonstra mais do que a habilidade de Elza com as palavras, mas também reafirma o desejo de ser uma cronista da realidade da população negra marginalizada. “Olha o negro sentado num toco /  Sentindo cansaço de tanto chorar / Mas se Cristo olhasse pra baixo / Muita gente ia ter que pagar / Quando nessa casa entrei / Eu louvei Maria”, canta.

Antevendo o axioma de que “Deus é mulher” (que batizaria seu disco de 2018), Elza homenageou com um olhar ecumênico sua fé nas entidades femininas, dedicando uma faixa do álbum de 1974 à orixá Iansã e outra faixa à Virgem Maria. “Eu vou onde seja do bem. Eu vou onde estiver meu Deus”, explica Elza, que, ao longo de sua vida, já frequentou as mais diferentes religiões, da umbanda ao hinduísmo. 

A relação com o carnaval também é louvada em duas músicas, “Bom Dia Portela” e “Meia Noite Já É Dia”, que também refere-se à Portela. Elza Soares tornou-se, em 1969, a primeira mulher da história a puxar samba-enredo em um desfile de carnaval e, apesar de ter saído na Mocidade em 1974, ela sempre teve amizades em todas as escolas. “Amor à arte faz isso. Você consegue cantar em qualquer agremiação. É o amor à arte, amor à música”, explica Elza: “Puxar samba na avenida não é fácil… Mas também não é difícil, não! Hoje, a gente vê nas escolas de samba mais mulheres puxando samba, é isso aí”.

Em mais de 60 anos de carreira, a cantora lançou muitos discos que citam de alguma forma seu nome. Porém, só dois deles foram batizados apenas com seu nome e sobrenome Elza Soares: o último na Odeon, de 1973, e o primeiro na Tapecar, de 1974. Não parece uma escolha aleatória, ambos álbuns são reapresentações da artista ao seu público, o fim de um capítulo e o começo de outro. O LP homônimo de 1974 teve uma recepção muito boa, sendo considerado um dos pontos altos de toda sua longa discografia, que segue crescendo. 

De lá para cá, Elza lançou 13 discos de estúdio, dois discos ao vivo e um disco de remixes. Atualmente, aos 91 anos de idade, a artista segue em atividade plena e prepara o lançamento de mais um álbum novo. Até o fechamento desta matéria, ainda não haviam sido divulgadas maiores informações e, perguntada sobre isso, Elza responde apenas: “Surpresa! Só uma coisa a dizer: vivam as mulheres!”. Convicta em suas lutas e mais combativa do que nunca, Elza Soares eterniza-se no agora, honrando dia a dia o posto de ser uma lenda viva, que lhe cabe tão bem.  

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 113 da revista NOIZE, lançada com o vinil Elza Soares (1974), em 2021.

Tags:, ,

07/01/2025

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Avatar photo

Ariel Fagundes