Existem músicos que fazem apenas música, outros fazem a diferença. Após o lançamento de Selvática, não restam dúvidas sobre em qual grupo Karina Buhr se encontra.
Ela poderia ser descrita como uma cantora que lançou três discos solo belíssimos. Ou como uma poetisa inspirada que estreou nas livrarias em 2015 com a obra Desperdiçando Rima. Ou então como uma percussionista de mão cheia que já gravou com Mundo Livre S/A, participou da banda Eddie e formou o grupo Comadre Fulozinha.
Mas a verdade é que Karina Buhr é tudo isso e muito mais. Basta vê-la no palco, ler os seus versos ou, simplesmente, ouvir a sua voz para se arrepiar com a força de uma mulher disposta a atacar a estrutura conservadora da sociedade, caso lhe pareça necessário. A capa do seu disco mais recente, por exemplo, gerou todo um rebuliço apenas pelo fato de Karina aparecer despida nela. O Facebook censurou a imagem, o que motivou o Ministério da Cultura a se posicionar criticando a rede social. Ao mesmo tempo, muita gente passou a publicar em seus perfis pessoais fotos de seios nus e mensagens de apoio à artista com a hashtag #selvatica, em uma ação espontânea de guerrilha virtual surpreendente.
Tudo isso deixou Karina Buhr feliz da vida, como ela conta na entrevista exclusiva que você lê abaixo.
A ideologia patriarcal, por muito tempo, dificultou muito a entrada das mulheres no mundo profissional, inclusive na música profissional. Como você avalia essa situação hoje? Será que avançamos?
Avançamos, mas falta muito ainda. Em todos os setores e na música não é diferente. As mulheres são tratadas como seres a parte, pessoas delicadas e “diferentes”, são um tipo de gente que fica naquela categoria quase café com leite, de enfeite. Quando uma mulher consegue destaque ela se torna destaque entre as mulheres e não entre todos. Já um homem, quando é destaque, é destaque entre todos, o supremo, o principal, o genial. É muito comum uma mulher ouvir a vida inteira que é muito “talentosa”, como se fosse uma eterna criança prodígio, simplesmente por fazer bem o que faz.
Escolher uma vida dedicada à arte, muitas vezes, é uma decisão difícil. O fato de ser mulher lhe trouxe dificuldades “extras” quando você tomou essa decisão? Pergunto em relação a sua família, às convenções sociais do seu entorno…
Aí é que tá… o “extra” que você usa pra perguntar sobre as dificuldades, é extra em relação ao que os homens sofrem, porque os homens são tidos como referência pra tudo, mesmo as mulheres sendo metade da humanidade. Só que pras mulheres esse “extra” é o normal, a gente enfrenta barreiras pesadas em qualquer coisa que formos fazer fora do círculo “casar e ter filhos”. Ainda é assim, muito fortemente assim. Mas minhas decisões pessoais sempre tomei sem buscar o aval da minha família, então isso especificamente não me prendeu. Em casa, basicamente, minha mãe apoiava e meu pai não, até o dia em que ele viu o primeiro show da Comadre Fulozinha e ouviu as duas primeiras músicas que fiz. Ele se emocionou e, a partir dali, não tentou me desviar mais do caminho.
Desde o seu 1º disco, há faixas que questionam o modelo das relações amorosas e o papel de submissão imposto às mulheres. Houve alguma razão em especial que lhe fez decidir escrever agora um álbum totalmente voltado para a temática do empoderamento das mulheres?
Tudo o que faço na minha vida é no sentido de conseguir viver em paz e isso inclui o feminismo. Isso não significa que eu vá só falar sobre isso, de maneira nenhuma. Nem considero um “disco feminista” ou um “disco de mulher”, considero simplesmente um disco. Não existe uma razão especial além do fato de eu ser mulher, mas, de toda forma, não considero ele um álbum totalmente voltado pra essa temática não.
Na música “Esôfago” o personagem que canta é o assassino suicida da muher, em “Pic Nic” é uma empregada doméstica que pensa alto, a música “Selvática” contém essa ideia feminista e forte bem concentrada… Mas falo também das cidades, de gentrificação, em outra música falo de um ladrão, na outra sobre uma guia de Iansã quebrada na beira do mar, em outras duas falo de ciganos e imigração, outra é uma balada romântica depressiva…
O feminismo é forte no conceito do disco, mas ele é um mote pra contar um monte de coisas, criar roteiros e personagens.
O feminismo existe pra, entre outras coisas, permitir que mulheres digam o que querem. Quero dizer o que quero e não encerrar no feminismo por ele mesmo. Inclusive, quero que a gente chegue numa igualdade entre homens e mulheres o mais rápido possível pra que a gente tenha a liberdade de falar realmente sobre o que quiser, sem ter antes que quebrar tantas barreiras, nessa exaustão sem fim.
Como você se sentiu com a polêmica que surgiu em torno da capa de Selvática? Você previu a censura do Facebook? E o que achou da nota do Ministério da Cultura?
É ridículo e também muito sério todo esse melindre de ninguém poder ver peito de mulher fora de uma situação de objetificação machista, como a que vemos em todos os lugares, a toda hora.
Me senti mal com a censura, claro, é uma violência, uma poda numa ideia. Eu achava que ela podia acontecer, porque acontece a toda hora com todo mundo, comigo foram várias vezes, tanto com desenhos como com fotos, mas acaba que o próprio Facebook ficou confuso e excluiu muita gente, bloqueou outras tantas, cancelou perfil, enquanto duas pessoas que postaram a capa receberam aviso deles de que a foto não violava as leis e tal.
No fim, tudo acabou virando uma coisa maravilhosa porque viralizou e gerou um debate fortíssimo sobre censura e machismo, além de a capa acabar circulando muito mais do que circularia se não tivesse acontecido a censura. Eu fui bloqueada por 3 dias por compartilhar o link do Minc com a capa do disco e uma nota criticando a censura nas redes sociais. A nota do Minc foi importantíssima, inclusive o próprio Minc passou por isso quando postou uma foto de um casal de índios botocudos. No fim, tava emocionante, bem lindo de ver a busca por #selvática no Facebook. Muita arte linda, antiga e de agora, mutas mulheres postando fotos, muitos questionamentos.
“Selvática” me soa como uma música violenta. Na sua opinião, até que ponto a violência é um instrumento legítimo de combate às injustiças?
É exatamente o contrário! É uma música contra todas as violências que as mulheres sofrem desde a gênesis! A letra fala no algoz deixar de ser algoz, dele enforcar o ódio dele com cipó da raiz desse próprio ódio e se tornar a espada da vítima contra o mesmo ódio. Ela fala “sedarás o mal, interceptarás no meio do caminho o espeto”.
Você é uma artista que se expõe de um jeito muito visceral (nos seus shows, letras, redes sociais…). Isso já lhe trouxe problemas? Já sofreu algum tipo de represália, por exemplo?
O tempo inteiro, de maneiras sutis e também agressivas e, muitas vezes, prejudiciais ao meu trabalho.
Tráfico d pílula d dia seguinte, mais pílula d farinha, mais mulher morrendo, mais mulheres e homens pobres presos.Tá ótemo nosso horizonte.
— Karina Buhr (@karinabuhr) October 22, 2015
CBF machista dos inferno. CBF machista. CBF dos inferno. https://t.co/Jf3FZGaAxW
— Karina Buhr (@karinabuhr) October 9, 2015
"Exibe os seios". "Mostra os mamilos". Não tô mostrando, nem exibindo nada, só tô sem camisa. #selvática
— Karina Buhr (@karinabuhr) October 7, 2015
Deixa ela em paz!!!
Posted by Karina Buhr on Quarta, 21 de outubro de 2015
Você se considera uma artista militante?
Tem coisas que são importantíssimas pra mim e brigo por elas desde sempre, não faz sentido pra mim se não for assim. Seria assim se eu trabalhasse com qualquer outra coisa.