Entrevista | A mitologia pop de Bowie, Kiss e Lady Gaga, por Ticiano Paludo

08/11/2017

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Reprodução

08/11/2017

Nos tempos em que a noite era iluminada apenas pela lua, as estrelas e o fogo, provavelmente eram histórias sobre as aventuras de Hércules, as travessuras de Zeus ou a beleza de Helena de Tróia que inflamavam os ânimos da juventude grega da Antiguidade. O ser humano é fascinado por narrativas fantásticas sobre figuras que extrapolam os limites mundanos da vida banal e quem assumiu esse papel de protagonistas das lendas que atiçam a juventude a partir do século XX foram, muitas vezes, os músicos.

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É sobre isso que trata o novo livro Mitologia musical: Estrelas, ídolos e celebridades vivos em eternidades possíveis, escrito pelo produtor musical Ticiano Paludo. No próximo domingo (12/11), o autor irá lançar a obra na Feira do Livro de Porto Alegre em sessão de autógrafos às 17h30, mas antes, às 15h30, ele ministra a palestra “Estrelas Pop Cadentes: Mitos e celebridades em adorações efêmeras”, na Sala Leste do Santander Cultural (entrada gratuita).

Em seu livro, Ticiano faz uma análise profunda da relação que existe entre a idolatria aos artistas pop e o culto a figuras mitológicas, que norteia boa parte das expressões religiosas que já surgiram no mundo. “O show é a peregrinação dos fiéis até o altar sagrado, o palco, e de devoção máxima perante o ser mágico”, exemplifica Ticiano. Na entrevista que você lê na íntegra abaixo, o autor explica os principais pontos da sua pesquisa, que aborda especialmente os casos de David Bowie, Kiss e Lady Gaga.

Ticiano Paludo (Foto: Divulgação)

Os mitos sempre existiram porque desempenham um papel tanto no plano social (ao apresentarem conceitos e valores que norteiam a vida em sociedade) quanto no plano individual (ao sugerirem formas sobre como o indivíduo pode lidar com suas questões íntimas). Como essa dinâmica se mantém hoje? O avanço tecnológico interferiu de forma significativa no modo como as pessoas se relacionam com as narrativas que estruturam suas vidas?
Desde os tempos mais remotos, o ser humano busca explicações sobre o significado da vida. Qual o propósito de estarmos aqui? Por que as coisas são como são? Existe um ou mais deuses? Como o mundo veio a ser o que é? O homem arcaico encontrava nos mitos e nas lendas explicações fantásticas para fenômenos dos quais não tinha certeza. Por exemplo: fazendo oferendas aos deuses, certas comunidades acreditavam que tal ação seria garantia de uma colheita próspera. Naquele tempo, os mitos forneciam modelos de conduta para o humano, como vetores que guiavam as suas ações perante o mundo e seus semelhantes. Também forneciam explicações sobre porque uma realidade passou a existir. Além disso, auxiliavam a explicar a cosmogonia, ou seja, a origem das coisas. O que defendo em meu livro é que esse papel, que era atribuído aos deuses, embora ainda permaneça vivo nas religiões de hoje, deslocou-se, sobretudo, para as estrelas musicais. Artistas como Lady Gaga (uma das quais analiso na obra) auxiliam os seus fãs a sentirem-se melhor consigo e com suas vidas. As letras abordam dramas existenciais e funcionam como um colo materno que acolhe, principalmente no caso da Gaga, aqueles que se sentem deslocados, oprimidos ou solitários. O consumo musical é a nova oferenda. Os mitos musicais seguem fornecendo modelos de conduta humana. A indústria do espetáculo, amparada pelo que chamo de tecnologias do espetáculo, isto é, todo o arsenal de produção e promoção artística, empoderam o artista, conferindo-lhe um status de semi-deus, alguém iluminado, com poderes sobre-humanos, que fornece modelos e formas de viver. Se antes os mitos explicavam a cosmogonia do mundo, os novos artistas de hoje ajudam os fãs a compreenderem sua própria cosmogonia.

O que mantém um mito vivo hoje?
Os mitos musicais sobrevivem pela propagação da imagem. Essa propagação depende de exposição midiática. Por exemplo: diversos guitarristas (e me incluo nesse exemplo) amam Jimi Hendrix, o consideram um deus da guitarra. Porém, eu nunca o vi pessoalmente, nunca assisti a uma apresentação. Ele, inclusive, já estava morto quando eu nasci. Mas o seu fascínio e a sua chama artística permanecem por causa da imagem propagada pela mídia, pelos vestígios preservados e transmitidos pela tecnologia, neste caso, os álbuns (físicos e digitais) e as imagens compartilhadas, sejam elas fotos ou vídeos. Além dessa propagação, para que um mito se mantenha vivo, ele precisa que essa imagem seja compartilhada por um grande número de pessoas. É o fã quem dá vida ao ídolo (a palavra ídolo significa imagem). Se a estética e o discurso musical ainda fazem sentido ao público, a tendência é que o mito permaneça vivo. As bandas que não ouvimos mais e escutávamos no passado “morreram” pois sua mensagem não sintoniza mais conosco, ou com os grupos que nos cercam. A sobrevivência do mito depende de sua pertinência, de seu poder de encantar, não ser desvendado, permanecendo envolto em uma aura de magia e sedução, e continuar tocando a mente e o coração da audiência.

Como esse processo de endeusamento dos músicos acontece hoje e do que ele depende?
Os mitos podem fazer coisas que os mortais não podem. Se você atirar um televisor de um quarto de um hotel, possivelmente será preso, ou no mínimo, vai se incomodar muito. Agora, se uma estrela musical fizer isso, esse ato pode ser encarado como algo mágico, algo que lhe é possível sem que exista uma repressão, afinal, trata-se de uma estrela. É justamente nesse tipo de atitude que se baseia a construção estelar. As estrelas musicais são seres de atitude, isto é, a partir de uma emulação de suas personas artísticas, colocam-se como seres especiais, dotadas de um carisma avassalador, de um poder de sedução fantástico. Ter atitude significa estar envolto em uma aura de mistério, ser dotado de uma força sobre-humana, e conseguir canalizar a sua energia nos processos artísticos. Todos os pontos de contato da estrela (seus álbuns, seus shows, seus souvenirs) funcionam como imas, que conectam seu poder aos mortais. A estrela não quer ser desvendado como uma construção cultural, pois quando um mito é desvendado, ele perde o seu encanto. Por isso, muitas vezes, conhecer o ídolo de perto pode aniquilar o mito.

Seriam os músicos os heróis míticos do mundo atual? Seriam os seus instrumentos as suas armas e ferramentas mágicas? Que exemplos você pode dar?
Mesmo que hoje a música pop seja muito mais hedonista e menos crítica, os artistas musicais do mainstream podem ser considerados heróis. O herói é aquele que recebe um chamado, ele tem uma missão. No caso da música, essa missão é a de tornar o mundo um lugar melhor, de oferecer, a partir das canções, questionamentos sobre a vida e respostas aos problemas cotidianos. As tecnologias do espetáculo, isto é, todo o arsenal tecnológico utilizado para empoderar o artista, funciona como um amplificador de poderes. Quando um artista toca um acorde de guitarra em um estádio e o som sai como um rugido animal de força que ecoa na enésima potência, ele se mostra muito mais poderoso do que alguém que toca o seu violão no quarto de casa. Artistas como Lady Gaga propagam que dão tudo pelos fãs, afinal, o herói é aquele que dá a sua vida por uma causa, enfrenta obstáculos inalcançáveis para as pessoas comuns, e retorna para contar a todos o seu feito épico, que tem sempre uma mensagem edificante, um exemplo de superação, uma mensagem de luz cósmica. O funk ostentação vem com tudo para mostrar que todos querem consumir coisas bacanas, e não só a elite. Karol Conka mostra a força feminina, uma das grandes revelações dos últimos tempos. David Bowie (outro artista analisado na minha obra) sempre se mostrou como um herói corajoso, uma vez que destruía seus projetos musicais para manter-se sempre em movimento.


Tanto o violinista Niccolò Paganini quanto o bluesman Robert Johnson ganharam a fama de terem feito um pacto com o Diabo para serem capazes de tocar tão bem. O que esse paralelo separado por séculos e continentes revela sobre a aura mitológica que cerca os artistas?
A romantismo do talento divino é falso. Se você analisar a biografia de grandes músicos, verá que eles dedicaram-se incondicionalmente ao seu ofício. No caso dos instrumentistas, eles passavam praticamente o dia inteiro tocando e se aperfeiçoando. Só que isso exige muita disciplina e esforço contínuo. Esse tipo de associação com grandes talentos e pactos sobrenaturais acabam por tornar tais mitos ainda mais nebulosos e, por isso, apaixonantes. Quando esse tipo de explicação emerge, temos uma retomada aos mitos do homem arcaico, que, por não conseguir explicar os fenômenos, atribuía-os aos deuses (nesse caso que tu citas, ao Diabo). A polêmica ajuda a vender. O desconhecido sempre assustou e fascinou o homem.

Que relações sua pesquisa aponta entre o espaço de um show e o de um ritual dedicado a uma figura mitológica?
O show é um ato coletivo, o momento de encontro entre o fã e o ídolo. Show é troca pura de energia. É o momento máximo da idolatria. É a peregrinação dos fiéis até o altar sagrado, o palco, e de devoção máxima perante o ser mágico. Cada show funciona como uma confirmação da fé. É o momento do ídolo provar o seu valor, de mostrar, a partir das tecnologias do espetáculo, todo o seu poderio, o seu carisma. O show é um ato catártico, uma purgação. Quando saímos extasiados de um show, diferentes do que entramos, temos a certeza de que o ídolo é poderoso, de que merece o nosso amor e nossa admiração.


Você traz o conceito de “artista total” ao descrever músicos como David Bowie, Kiss e Lady Gaga. Por favor, explique esse termo e por que escolheu esses artistas para fazer a análise de seus clipes.
O artista total é aquele que utiliza de todos os recursos possíveis para construir o seu discurso, seduzir a audiência e conquistar o seu lugar no panteão dos escolhidos, dos grandes astros. O artista total é aquele que não só domina o campo musical, como também as artimanhas do espetáculo. Ele é um misto de artista, comunicador social e estrategista de marketing. Claro que ele não faz tudo isso sozinho. Talvez Lady Gaga seja o grande exemplo atual. Porém, ela atualiza o que Bowie já fazia no passado. Compositores clássicos como Handel já haviam pensado assim. Para acontecer, é preciso estar aonde as coisas acontecem, ter contatos, e uma equipe capaz de potencializar o talento. David Bowie sempre funcionou desse modo. Gaga é um misto de Bowie e Kiss. Esses três artistas servem-se de todo o arsenal possível para misturar literatura, ópera, música, teatro, dança, moda e pinturas corporais. Compreendo Bowie como uma matriz para Kiss e Gaga, Bowie e Kiss como matrizes de Gaga. A diferença é que, para manter-se vivo e atraente, Bowie matava suas personas assim que elas se consolidavam, mas ele levava um ano para isso. Gaga, por sua vez, pode ser diversas personas dentro de uma mesma música (veja, por exemplo, o clipe de “Applause”). O Kiss, embora tenha uma fase diferente de seu genoma, retornou ao mito de origem: seguem pintados, sendo sempre os mesmos. Escolhi esses artistas pois acredito que eles representam bem o que um artista deve fazer para manter-se vivo em uma sociedade líquida que descarta os artistas em função da abundância de ofertas. Encaro o videoclipe como um oratório, uma imagem de devoção. Cada nova exibição do clipe, ajuda a perpetuar a imagem do mito. E assim, procurando ser um mister de entretenimento e arte, esses artistas procuram sua eternidade. Termino a obra apresentando o que chamo de eternidade possível: só sobreviverão aqueles que conseguirem se mover tão rapidamente que consigam hipnotizar uma audiência afogada na miríade de novos sons e cores despejados diariamente nas nossas telas fixas e móveis. Que sejam eternos enquanto possíveis.

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08/11/2017

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes