Exclusivo | O impacto das enchentes na música do Rio Grande do Sul

20/06/2024

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Erick Bonder

Por: Erick Bonder

Fotos: Agulha e Estúdio Tambor e Arte

20/06/2024

“Os nossos equipamentos ficaram debaixo d’água por vinte dias. Sou colecionador de instrumentos de percussão há muitos anos, o meu acervo estava lá. Ainda não sabemos exatamente o que perdemos e o que vamos conseguir recuperar”, divide Lucas Kinoshita, baterista, professor de música e proprietário do Estúdio Tambor e Arte, sobre a dimensão dos estragos das enchentes. 

A previsão é que os prejuízos cheguem a R$40mil, entre placas de som, microfones, monitores, amplificadores valvulados e danos na estrutura do imóvel localizado no bairro Harmonia, em Canoas, um dos mais impactados pelo desastre ambiental do Rio Grande do Sul. A tragédia do espaço, dividido por Kino e seu sócio Clauber Scholles, baixista e produtor musical, é apenas um dos diversos exemplos dos impactos da violência das águas na música gaúcha. 

Segundo levantamento feito pelo RS Música Urgente com respostas de 1063 pessoas: 813 têm a música como profissão; destes trabalhadores, 634 tiveram shows, apresentações ou outros tipos de eventos cancelados. A iniciativa apoia as vítimas com auxílio emergencial, que busca dar suporte financeiro aos profissionais da cultura que tiveram suas fontes de renda afetadas.

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A maior concentração de atingidos, 413 profissionais, trabalha em Porto Alegre. Bruno dos Anjos, produtor cultural à frente do OCorre Lab, explica que maio e junho são os meses mais frutíferos para a cultura do estado. “É como se fosse o epicentro do primeiro semestre. Tinha muita coisa planejada e tudo foi interrompido. A gente tinha uma agenda com vinte datas, entre a capital e outros lugares, mas toda a programação foi cancelada.” 

Para quem vive de fazer shows, sejam artistas, produtores, operadores de luz ou som e roadies, a situação se tornou inviável, pois tiveram a sua fonte de renda cortada. A sensação geral é que o cenário é muito parecido com o da pandemia, em que grande parte da cadeia da cultura se viu, de um dia para o outro, sem ter como sobreviver.

“Quando eu fiquei sem agenda, me assustei, porque tu imagina que vai ter o dinheiro para pagar aluguel, cartão de crédito, mas seu orçamento está lá no início do alfabeto. São coisas que todo mundo passa, é a labuta da maioria da população, isso não é diferente com quem trabalha com arte”, declarou Lucas Fê, baterista do Grupo Kiai.

Assim que pôde, Lucas saiu de Porto Alegre e foi para Florianópolis, capital de Santa Catarina, estado vizinho ao RS. “Quando a gente tem possibilidade de correr atrás, a gente vai, entendeu? Mas não é todo mundo que consegue fazer isso. Eu já tinha trabalhado aqui algumas vezes. Então, vim pra cá e acionei uma galera. Falei: ‘Tô aqui, refugiado climático e precisando trabalhar, me chamem‘. Foi essa atitude que eu tive que tomar frente ao que aconteceu. Procurar uma maneira de seguir e arcar com os meus compromissos”.  

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Entretanto, não é todo mundo que consegue encontrar formas alternativas de gerar renda. Ao mesmo tempo, não são poucos os casos em que os problemas se cruzam. A pessoa que trabalha com música e teve a agenda cancelada, também teve sua casa alagada e pode ter perdido seus instrumentos e espaço de trabalho. O cenário gera uma série de incertezas: além do impacto material, há impactos emocionais e deterioração da saúde mental. 

As implicações da crise climática devem ser analisadas através da interseccionalidade, pois questões como classe, raça e gênero, tornam as consequências ainda mais duras para uma parte da sociedade. No caso da rede de pessoas com as quais convive e trabalha a cantora, compositora e instrumentista Viridiana, que integra o grupo Inquilinas, o cenário é desolador: “Desde a pandemia, eu nunca tinha falado com tantos colegas e criativos geniais, pessoas com muito fogo e paixão pelo que fazem, pensando em desistir e migrar para outras áreas. Mais uma vez, nos encontramos à deriva. Há uma sensação de culpa ao pedir ajuda, parece que o nosso problema não é prioridade, e isso é super delicado.” 

O ano passado representou uma retomada na cidade, e 2024 prometia ser um momento de florescimento. “A cultura é uma área de trabalho permeada pela incerteza. Isso não é sustentável. Isso cria uma classe artística que adoece tentando fazer o que faz de melhor”, completou a artista.


Ações de reconstrução: do poder público à sociedade civil

Um consenso da classe cultural é a necessidade da ação direta e apoio do poder público para uma possível retomada. Em nota, a Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul afirma que “a Sedac vem adotando várias medidas em colaboração com o governo estadual e o Ministério da Cultura (MinC), alinhando ações com parceiros públicos e privados e orientando prefeitos e dirigentes culturais.”

De acordo com a instituição, a secretaria antecipou recursos para projetos da Lei Paulo Gustavo, sendo que 237 projetos já receberam R$49.145.216,23. Por meio do programa Banrisul Reconstruir RS, serão destinados mais de R$25 milhões para a recuperação de instituições da Sedac e para iniciativas de retomada de trabalhadores e projetos da área. Além disso, o Sebrae investirá R$59,5 milhões para apoiar microempreendedores individuais e microempresários da cultura.

A Sedac também alega prever novas linhas de fomento, mas, questionada, não forneceu mais informações sobre os planos. Em relação a dados solicitados pela reportagem sobre os impactos das enchentes no setor cultural, a secretaria alega que existem levantamentos em elaboração com parceiros externos não nomeados e admite: “No momento, não há essa consolidação específica”.

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A situação da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de Porto Alegre está imersa em incertezas. No cargo interinamente desde abril, o responsável pela pasta, Eduardo Paim, pediu exoneração na última terça-feira, 18/6, para defender-se da investigação da Polícia Federal referente ao seu envolvimento com um caso de corrupção. Na última semana, quem assumiu interinamente a pasta foi Liliana Cardoso.

A instabilidade dificulta ações efetivas por parte da Secretaria Municipal. No dia 28/5, anunciaram que fariam a distribuição de 500 cestas básicas para artistas, produtores e técnicos da cultura, em parceria com a CUFA. Questionada sobre a previsão de possíveis apoios financeiros para trabalhadores ou espaços voltados para a música, a secretaria compartilhou o plano geral da prefeitura para a reconstrução da cidade. 

Entretanto, não há informações sobre políticas públicas destinadas à cultura, para além das ações econômicas, como a prorrogação de impostos municipais e linhas de créditos. Por mais que algumas empresas do setor cultural se encaixem nessas medidas, pelas especificidades do mercado, seriam necessárias ações pontuais, que conseguissem abraçar tais particularidades. 

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“É muito difícil fazer a conta fechar”, pontua Bruno dos Anjos. “Imagina todas as dificuldades de logística? Aumenta custo, tempo, tudo. Tanto para trazer artistas para cá, quanto para levar nossas bandas para fora do estado”, afirma o produtor cultural. No último mês, foi anunciado que o Aeroporto Salgado Filho permanecerá fechado até dezembro. 

Nos próximos passos, o produtor do OCorre Lab estuda como realizar programações menores, com capacidade para no máximo 100 pessoas. “Tem menos palcos, menos possibilidades de receita de quem vai pagar por esses shows. Então, precisamos reduzir para não morrer. Não dá pra continuar tendo as mesmas pretensões, achar que a coisa vai ser como era antes”. 

Olhando para o cenário desanimador para o fim do ano, Viridiana é categórica: é necessário uma ação conjunta. “Não tem assistência e não tem plano de ação emergencial. Não podemos focar em soluções temporárias para coisas permanentes. Precisamos de ações com protocolos para nos prepararmos para quando isso acontecer de novo”, comenta a artista. 


A classe artística, apesar de não ter capacidade de suprir todas as demandas, se organiza como pode para buscar atender necessidades básicas e complementar com aquilo que o Estado, sucateado, não entrega. O RS Música Urgente tem se mobilizado para angariar fundos para o pagamento de auxílios emergenciais. Até hoje, 20/6, foram doados R$500 para 135 profissionais.

A rede de solidariedade surpreendeu Lucas Kino. “Sentimos muita gratidão pela quantidade de ajuda, isso é o que nos deu força para seguir, porque passou pela cabeça desistir”, comenta o músico. Para ele, o apoio foi fundamental para seguir em meio ao cenário traumático: “Estender uma mão tem muito impacto. Não é o que eu sinto da administração pública, pois não senti nenhuma ação efetiva que fizesse eu me sentir sendo cuidado. A gente se sente desamparado, desprotegido pela administração pública e, portanto, com muito medo”.


Sobre o que julga necessário para uma retomada consistente da música gaúcha, Lucas Fê provoca: “As instituições da cidade e do estado, tanto públicas quanto privadas, precisam subsidiar caixas para eventos culturais. Talvez seja o momento dos produtores e curadores também levarem os trabalhos feitos aqui para festivais e casas de show fora do RS, fazer escoar essa produção”.

O NOIZE Record Club uniu-se a Vitor Ramil para angariar fundos para a reconstrução da cultura do estado. Ramilonga (1997), lançamento de junho do clube, integra a campanha Juntos Pela Música no RS. Parte dos lucros das assinaturas será doada para a classe musical gaúcha, assim como 100% das vendas avulsas, abertas pelo mês inteiro.


Além disso, estão sendo organizados festivais e shows beneficentes, como o Um som pro Sul, que aconteceu no Circo Voador, com produção MangoLab e NOIZE, na última quinta-feira, dia 13/6. Nesta semana, por exemplo, de 19/6 a 23/6, o Theatro de São Pedro está realizando shows com entrada franca e recebimento de doações. A Fresno organizou o festival Recomeço, que acontecerá no próximo sábado, 22/6, no Auditório Araújo Vianna, com os valores dos ingressos convertidos em doações.

Danos no aparelho cultural: analisando o caso Agulha

Em Porto Alegre, há um grande número de casas de shows ou espaços de cultura em três bairros severamente afetados pelas enchentes: o Centro Histórico, a Cidade Baixa e o Quarto Distrito. Isso faz com que a cidade com a maior concentração de profissionais da música no estado, não tenha locais e estrutura para absorver esses profissionais. 

Inclusive, locais que não foram atingidos pelas águas fecharam temporariamente por terem sido afetados de forma indireta. Sem contar outras casas de show que foram completamente destruídas. O Gravador Pub, o Espaço Cultural 512, o Grezz Pub são alguns exemplos de locais, que estão buscando formas de reabrir ou, no caso dos que já estão operando, de permanecer abertos. 


Um caso emblemático é o do Agulha. Inaugurado em 2017, o espaço tornou-se um dos mais importantes para a música alternativa e independente. Com capacidade máxima para aproximadamente 300 pessoas, o local supriu a demanda por casas de show médias, colocou a cidade no circuito nacional midstream e virou um dos palcos mais conhecidos do Brasil. 

“A nossa ideia sempre foi mesclar um lugar apropriado para a escuta, para a apreciação de shows, com foco em música autoral, alinhado a uma boa experiência de bar. Essa junção viabilizou apresentações que muitas vezes seriam financeiramente mais delicadas”, explica Eduardo Titton, proprietário do Agulha. “Muitas vezes, o bar corrigiu financeiramente o pilar dos shows, que eram o motivo da gente existir”.

Localizado no Quarto Distrito, a casa de shows, um antigo galpão alugado, sofreu danos irrecuperáveis. Durante duas semanas, era impossível entrar no local para avaliar as perdas. “Na parte administrativa, na cozinha, no salão, nosso sistema de distribuição elétrica. Todo o nosso backline, amplificadores, subwoofers, caixas de monitores, três mesas de som, fora a parte de prevenção de incêndio e isolamento acústico, coisas que as pessoas têm pouca dimensão. Perdemos tudo”, afirma.  


A parte estrutural do imóvel também foi duramente afetada. Com o acúmulo de água e mofo, os tijolos começaram a esfarelar. A madeira do telhado e de algumas colunas de sustentação começaram a envergar, representando sérios riscos. Depois de um levantamento inicial dos prejuízos, o Agulha anunciou uma vaquinha online, com duas metas: uma delas pedia cerca de R$500 mil, que previa a permanência no mesmo espaço, e outra de um pouco mais de R$1 milhão, previa a mudança para outro local. Alguns dias depois, surgiram questionamentos nas redes sociais sobre tais valores, que logo enveredaram para uma onda de cancelamento.

“Nós consultamos as nossas reservas e constatamos que não tínhamos os valores necessários, porque não conseguimos recuperar o caixa depois da pandemia, quando ficamos dois anos sem shows. A vaquinha incluía os valores da reforma, mas também o necessário para pagarmos nossos funcionários enquanto permanecessemos fechados. Eram valores estimados, iniciais, provavelmente sairia ainda mais caro. Mas no site da vaquinha estava dito que, na remota possibilidade de custar menos que o previsto, o valor excedente seria usado para pagamento de cachês e realização de shows gratuitos”.

Aqueles que reagiram com fervor desmesurado nas redes sociais, chegando a abordar com ofensas artistas que compartilharam o post vaquinha, esqueceram-se do alto custo da operação. Além disso, vilipendiaram não apenas um possível aliado da retomada da música, mas um de seus eventuais principais agentes. Com a repercussão negativa, a campanha foi cancelada, assim como outros planos paralelos de arrecadação para a reconstrução. O Agulha se mantém de portas fechadas, sem previsão de retorno.

“Finalizamos a retirada dos entulhos e entregamos a chave na imobiliária. Tentamos de tudo, mas o Agulha foi obrigado a fazer esse movimento de desligamento de equipe, pagando todos os direitos trabalhistas. É importante dizer: o que fez o Agulha fechar foram as enchentes”, conclui Eduardo Titton.


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20/06/2024

Erick Bonder

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