Kiko Dinucci disseca “Rastilho” no projeto Discotecagem Comentada

10/02/2023

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Ariel Fagundes

10/02/2023

Um encontro íntimo entre artistas, suas referências e seu público. Foi esta a proposta da mais recente edição do Discotecagem Comentada, iniciativa do podcast Balanço e Fúria, realizada na quinta-feira (9), em São Paulo. O projeto convidou Kiko Dinucci para falar sobre os caminhos por trás de seu álbum solo mais recente, Rastilho (2020).

“O Discotecagem Comentada é um espaço para compartilhar referências, pensar sobre música, e para acessar as pessoas e as obras que a gente gosta a partir de um outro ponto”, explicou Rodrigo Corrêa, idealizador do Balanço e Fúria, na abertura do evento que reuniu cerca de 30 pessoas no espaço Intercommunal Music.

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Por volta das 20h20, Kiko iniciou sua fala explicando que, naquela noite, sua intenção seria dividir algumas das histórias e inspirações por trás de Rastilho, um álbum delicado, no qual o artista buscou enfatizar muito o instrumento do violão. “Tentei pensar no que me influenciou a fazer esse disco e pensei muito no violão, no que me motivou a fazer um disco de violão. O Brasil tem toda uma escola de violonistas, e eu tinha mto complexo: ‘Como vou fazer um disco de violão depois desses caras? Eu não sei solar!’. Mas eu pensei nos violonistas que fizeram a minha cabeça, vou começar pelo Baden”, disse à plateia.

“Foi o primeiro cara que eu ouvi e pensei: ‘Pô, isso é violão, mas não é só violão, é outra coisa’. O violão do Baden sempre me incentivou nesse sentido, é meio rock, meio riff. Vou começar com o “Lamento Pra Exu”, que tá no Os Afro-Sambas (1966), mas eu peguei a versão instrumental que ele fez depois, sem o Vinicius. Então, vamos começar com o Exu do Baden, que eu acho que conversa mto com o Exu do Rastilho“.

“Sobre o Baden, uma coisa que me incentivou bastante nesse disco [Rastinho] é a coisa do timbre dele. Como é tira um som desses? Com eco e tal. Eu ficava preocupado com isso, tecnicamente, e aí fui ouvir mto discos dessa época”, disse Kiko, para logo revelar que a busca da timbragem do eco no seu violão remonta a uma experiência traumática que teve.

“Sobre esse excesso de eco, em 2019, eu tive acidente andando de skate, matei meu pé. Eu sentia muita dor e tomava muita droga, muita morfina, no hospital. Aí ouvia mto eco. E esse eco alucinado parecia o eco dos discos dos anos 1960. Aí eu pensei: ‘Pô, tenho que fazer um disco com esse eco’. Quando eu estava já me recuperando, acho que em outubro, saiu o Bacurau (2019), que tinha música do Sérgio Ricardo e do Geraldo Vandré. Eu separei a do Geraldo, vamos ouvir um pedacinho”.

No meio da música, Kiko interrompeu: “O reverb vai lá pra casa do caralho, é um tipo de reverb que a gente só encontra nessa época. Hoje, a gente tenta imitar com os plug-ins, mas não consegue muito”. Em seguida, ele tocou “Corisco”, de Sérgio Ricardo, parte da trilha sonora do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).

“Estávamos na era Bolsonaro, eu pensei que a gente estava no meio de um faroeste. E aí, quando vi o Bacurau era um faroeste, e o Deus e o Diabo na Terra do Sol também é. Eu sempre gostei do universo do faroeste. Fiquei pensando muito nisso, como parecia com a nossa era. E comecei a pensar de trazer isso para o disco da algum jeito. A faixa ‘Marquito’ eu fiz pensando nisso, lembrando do Enio Morricone“. Kiko citou com muito carinho a figura de Enio, o mais célebre autor de trilhas de filmes de faroeste, e soltou uma de suas músicas mais famosas, o tema de O Bom o Mau e o Feio (1966), do diretor Sergio Leone.

“Esse trompete tem uma divisão de tempos bem locas, a música tem várias camadas… Aí eu falei: ‘Tenho que fazer uma música meio Sergio Leone, o mais perto que eu consegui foi isso aqui”, disse Kiko tocando “Marquito”. “Pensei em nomes de pessoas que existiram, heróis que ninguém conhece. O Marquito era um guerrilheiro, braço direito do Marighela. Ele morava na Rua Fortunato, caiu numa esmboscada e foi fuzilado. Ele era bem linha de frente, estudava engenharia e planejava os assaltos, era meio um gênio nisso, mas também saia no faroeste. Quando eu li a biografia do Marighela, fiquei fissurado”, explicou.

Kiko comentou ainda sobre a história da capa de Rastilho, feita por Pablo Saborido, e depois falou sobre como o pós punk foi um caminho que lhe levou ao jazz e à música brasileira. “O pós punk abre portas para muita gente e ele tá no Rastilho também”.

Na sequência, ele tocou “Ceremony”, do New Order, e mostrou algumas guitarras isoladas de faixas do Sonic Youth, explicando como, de forma análoga ao violão do Baden – que soa como um berimbau, por exemplo -, as guitarras da banda também se transformam em outra coisa, algo indefinido que passa longe do que seria o som esperado para o instrumento. “Esse som de guitarra não existe. Isso me deu um estalo, o instrumento tem que ter outro som”, disse.

Como violonistas que também desempenharam a proeza de reinventar o jeito de tocar violão, Kiko trouxe então Gilberto Gil (“A primeira música que eu ouvi e pensei que tinha algo errado com o violão foi ‘Expresso 2222‘, tipo, tem cinco violões aqui? Não, tem um”) e Dorival Caymmi. “Dorival Caymmi é um cara que me inspira muito. Os baixos [de ‘A Jangada Voltou Só‘] são maravilhosas, me inspirou muito para fazer aquele riff de ‘Veneno‘”, explicou.

“Em ‘Veneno’, tem Gil, Caymmi e João Bosco. O João Bosco é determinante. Dá pra sentir muito o batuque que ele faz no violão. Esse lado do João Bosco me deixa maluco”, disse Kiko. Após tocar “Gagabirô“, ele mostrou à plateia um áudio que o João Bosco em pessoa gravou comentando o Rastilho, no qual ele diz: “Acho o timbre do disco muito especial, tanto das cordas do nylon quanto das cordas vocais. Gosto muito do timbre como um todo. Além disso, fervilhou minha memória com sons de violões que eu nem sei mais de que época são nem de quem. Cheguei a vislumbrar o rosto de um deles, que é o Baden. Gosto mto do batuque, da levada”. “O que eu acho mais sensacional é que ele não se ouviu em nenhum momento do disco”, completou Kiko quando o áudio acabou.

Na parte final da fala, Kiko ainda destacou o violão de Rosinha de Valença: “Conheci ela pelo Martinho da Vila, mas ela tem gravações solo lindas. Eu ouvi esse disco do Martinho e pensei: ‘Quem tá tocando esse blues?'”, referindo-se a “Renascer das Cinzas”. Jorge Ben também foi lembrado: “Eu vou tocar uma do Jorge bem que tem umas coisas rítmicas inacreditáveis”, e aí veio “O Homem da Gravata Florida”.

Para finalizar, Kiko comentou aquele que é o seu favorito: “Eu vou mostrar uma música do maior violonista de todos, os que eu mostrei antes que me desculpem, mas é o Nelson Cavaquinho“. “Pecado“, nesta versão do programa Ensaio, e reflexões sobre “o mundo cruel de Nelson Cavaquinho”, como Kiko disse, encerraram o Discotecagem Comentada em grande estilo, pondo luz nos caminhos tortos do violão brasileiro, esse instrumento que se torna tão magistral quando encontra as mãos de professores como Nelson, Baden, Gil e – por que não? – Kiko.

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10/02/2023

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Ariel Fagundes

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