Nelson Heráclito Alves Ferreira nasceu em 9 de dezembro de 1902, em Bonito, município do agreste pernambucano, a 130 km do Recife. O bonitense não poderia imaginar que na capital iria viver suas melhores histórias e, também, aquela que pode ser considerada a parte mais triste de sua trajetória.
Precocemente, aos 14 anos, Nelson, que veio de uma família de músicos, tem sua primeira composição gravada: “Victória”, uma valsa para piano. Aos 15, começa a ficar conhecido como um grande músico, tornando-se pianista de cinema mudo na capital. Aos 21, sua música “Borboleta não é ave” é registrada por Bahiano, o mesmo que lançou o primeiro samba registrado, “Pelo Telefone”. Na interpretação de um artista nascido na Bahia, essa faixa sai em 1923 pelo selo Odeon e entra para a história como o primeiro frevo gravado.
Além de compositor e instrumentista, em 1931, Nelson passa a assumir um importante papel na propagação do frevo por todo o Brasil como um ritmo genuinamente pernambucano. Ao se tornar diretor artístico da Rádio Clube de Pernambuco, inicia-se a caminhada para a conquista do título de “Dono da Música”. Em tom de crítica, autores que não conseguiam ter suas músicas incluídas no seleto grupo de execuções do maestro começaram a chamá-lo assim. Mas enquanto uns reclamavam, outros nomes ganharam força e reconhecimento nacional através da sua divulgação.
“Nelson tem um papel fundamental na consolidação do frevo. Ele começou a levar para a rádio as suas próprias músicas de carnaval e as músicas dos grandes compositores de frevo em Pernambuco, como, por exemplo, os irmãos João Valença e Raul Valença, Capiba e tantos outros. A expressão “Dono da Música” foi citada em um artigo por Leonardo Dantas Silva [jornalista e pesquisador], eu achei oportuno e pedi sua autorização para usar”, conta Angela Belfort, autora da biografia Nelson Ferreira, o dono da música (2009).
Apesar de ser sediada em Pernambuco, a Rádio Clube tinha um alcance que ia além das fronteiras do estado, o que reforçou ainda mais o consumo do frevo. “A rádio influenciou uma geração de músicos. Enquanto eu escrevia a biografia, conversei com Moraes Moreira e ele disse que ouvia a Rádio Clube de Pernambuco. Toda aquela geração de baianos foi influenciada, e muito, pelo frevo que tocava aqui e chegava lá”, aponta Angela.
Entrando nas residências através das ondas do rádio, o frevo — que antes era restrito a um pequeno grupo de compositores locais que produziam pensando no carnaval — começou a cair no gosto do grande público, inaugurando assim, um novo hábito de consumo e evidenciando ainda mais o pioneirismo de Nelson.
“Com as músicas na rádio, as gravadoras da época começaram a querer gravar, pois perceberam que existia um público da classe média do Recife, com potencial de compra, que queria essas músicas em casa”, explica a autora. “As músicas dele sempre ocupavam primeiro lugar, segundo lugar, nas paradas de sucesso. Então, realmente, a música durante mais de 50 anos passou por Nelson Ferreira”, finaliza.
Rumo às gravadoras
Em dezembro de 1954 inaugura-se, então, uma nova etapa que, mais uma vez, cruza a história do artista com a do frevo e a da indústria fonográfica. Comandada por Kurt Sonderman e pelos irmãos Isaac, José e Luis Rozenblit, a gravadora e fábrica de discos Rozenblit nasce para suprir uma necessidade de expansão e valorização do mercado local, já que as gravadoras localizadas no Sudeste não davam a devida importância aos ritmos do Nordeste como: caboclinho, cirandas, repentes e, claro, o frevo. Com total prestígio e conhecendo bem a cena local, o convite ao “Dono da Música” para entrar nessa empreitada era inevitável.
De olho no carnaval de 1957, o segundo semestre de 1956 trouxe o lançamento daquele que seria um sucesso estrondoso não só em Pernambuco, mas também no Rio de Janeiro, tiro certeiro da Rozenblit e de Nelson. Apesar de aparecer no lado B do disco, a canção surpreendeu positivamente. Com a letra fazendo referência a blocos carnavalescos extintos, “Evocação Nº 1”, trazendo Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon e os blocos das Flores, Andaluzas, Pirilampos e Apôs-Fum, gravada em vinil com o coral do Batutas de São José, desponta como um dos grandes hinos do carnaval até os dias atuais.
Na Rozenblit, Nelson Ferreira foi maestro, compositor, produtor, além de ter trazido para o frevo aquele que seria um dos maiores intérpretes do ritmo e, sem dúvida, o maior intérprete do próprio Nelson: Claudionor Germano. Mais conhecido por cantar o romantismo, ele se curva ao frevo, sendo em determinado momento o principal nome da gravadora Rozenblit. Em 1959, ele grava os LPs Capiba 25 anos de Frevo, e O Que Eu Fiz e Você Gostou, ambos para o carnaval de 1960.
“Inegavelmente, a oportunidade que Nelson Ferreira me deu foi uma grande virada de chave. Foi uma oportunidade que ele não tinha dado a ninguém ainda. Como intérprete da maioria das suas canções, eu gravei cerca de 60 músicas de Nelson. Foi uma oportunidade muito boa que tive, de trabalhar e divulgar as músicas da minha terra”, agradece Claudionor Germano, do alto dos seus 88 anos e memórias tão vivas quanto as belas canções de frevo eternizadas na sua voz.
Além do frevo
Para Claudionor, o legado de Nelson Ferreira não se limita ao frevo. A música popular brasileira como um todo se beneficiou do talento ímpar do maestro. “Como grande musicista, empregou nos seus arranjos musicais a sua força de bom arranjador e de bom letrista. Ele foi autor de uma versão brasileira de um bolero argentino que foi sucesso nacional. ‘Nunca jamais’, gravado por Angela Maria, por Onilda Figueiredo… Isso é um pouco do que Nelson era acostumado a fazer. Ele impôs aos seus colegas essas maneiras especiais de fazer os arranjos musicais, se tornando um exemplo nessa área”, diz o cantor.
Apesar da pouca convivência com Nelson, Nonô Germano, filho de Claudionor, também acabou “contaminado” pelo fervor da música e reconhece o importante legado de Nelson Ferreira. “Eu me sinto um privilegiado por ter crescido e convivido com muitos mestres. Dentre tantos nomes que a gente tem, de grandes compositores no frevo, os mais emblemáticos são realmente o de Nelson Ferreira e o de Capiba. A importância de Nelson é tão grande que, até hoje, as músicas são tocadas e lembradas em todos os carnavais. Por mais que se tente fazer novas canções e trabalhar o frevo de uma forma diferente, ele sempre está presente em todas as festas”, conta Nonô.
“A maior lembrança que tenho com Nelson, eu inclusive falo em muitas entrevistas, eu lembro muito do meu pai ensaiando, com Nelson ao lado no piano e eu sentado num banquinho junto dele, com meus brinquedos. Ouvindo tudo aquilo e deixando me contaminar com todo aquele frevo. Eu era muito pequeno ainda, mas essa imagem é muito forte”, diz Nonô, que, desde 2017, vem trabalhando a popularização daquilo que chama de “frevo de balada”, na busca por despertar um interesse maior do público jovem pelo ritmo e que o frevo volte a ser sucesso durante todo o ano, não apenas no carnaval.
Legado, memória e declínio
Após tantos serviços prestados à capital do frevo, os avanços tecnológicos, mudanças urbanísticas e o triste hábito de não se preservar a memória, o chamado “progresso” atingiu o maestro. “O fim da vida de Nelson Ferreira foi bem melancólico. A casa onde ele morou durante anos foi demolida. Ele precisou, contra sua vontade, se mudar para um apartamento. O Recife que ele tanto cantou foi se modificando. Na década de 1970, o frevo passa por uma enorme crise onde clubes e até poder público preferem contratar orquestras de samba”, conta Angela Belfort.
Cidade sendo modificada, rotina alterada, cultura local sofrendo fortes influências de ritmos de outras regiões. Nelson, assim como Recife de outrora, não tinha como ser o mesmo. A falta de reconhecimento na terra ao qual se dedicou a contar a história através das suas canções levou o maestro a outros carnavais, justamente no ano que completou 60 anos de carreira. “No seu último carnaval, em 1976, ele foi tocar na Bahia. Em Pernambuco não havia surgido nem uma proposta boa para participar do carnaval”, explica Angela.
Próximo de onde ficava o antigo casarão, demolido para ampliação da Avenida Mário Melo, no bairro de Santo Amaro, área central do Recife, há uma pequena praça pouco frequentada, com alguns bancos, mesinhas, brinquedos, os versos de “Evocação Nº1” estampados no piso e um busto do maestro. A Praça Maestro Nelson Ferreira é considerada por muitos uma tímida homenagem a quem tanto fez pela cultura nacional. O “Moreno Bom”, outro apelido que ganhou ao longo de sua carreira, morreu no dia 21 de dezembro de 1976, aos 74 anos, no Hospital Português do Recife.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição #91 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Orquestra Frevo do Mundo, em 2020.