Após integrar a banda Primos Distantes, o multiartista Juliano Costa já lançou três trabalhos caminhando solo: a estreia foi o álbum visual A Trilha da Trilha (2020), seguido por Barco Futuro (2021). Vida Real (2024), o mais recente, chegou aos nossos ouvidos no apagar das luzes de 2024, em uma fase que o próprio artista define como voltada para dentro.
Com faixas autobiográficas, o disco foi composto em um processo de autoconhecimento. Juliano criava quando começava a correr, inspirado pelo livro Do que eu falo quando falo de corrida, de Murakami, que destrincha a relação do escritor japonês entre o esporte e o fazer literário. “São músicas tão expressivas do momento, que eu quis gravar logo, do jeito que fosse possível, pra manter o frescor delas. Ao longo do processo, eu gostei da ideia de ser um disco mais livre, no sentido de formato mesmo. De ser um retrato sincero”, explica o artista.
Dividindo o ofício entre a música e a literatura, Juliano já tem duas publicações: O romance Fumo (Patuá, 2023), que figurou na lista de melhores do ano da revista 451, e o conto As Páginas do Relâmpago Elétrico (Garoupa, 2023), baseado no disco homônimo de Beto Guedes.
Crueza e poesia
A decisão de registrar as faixas de Vida Real forma crua, deixando escapar ruídos ambientes e elementos naturais da gravação, reforça o desejo de autenticidade que permeia a obra, funcionando como uma matáfora para o título do disco. Masterizado por Renato Medeiros, o álbum mantém a vibração do instante, como se cada canção fosse um fragmento sincero do presente.
Além de assinar a produção, Juliano toca a maior parte dos instrumentos, criando uma sonoridade que reflete sua liberdade criativa e o desejo de explorar diferentes texturas musicais. Para algumas faixas, contou com a colaboração de amigos como Caio Costa, Luna França e Cauê Benetti.
O aspecto artesanal não se limita à música: o material gráfico e físico do álbum foi feito à mão pelo próprio artista, reforçando o caráter independente e pessoal da obra. Do presskit à mídia física, cada detalhe carrega o mesmo espírito do it yourself) que orientou a produção musical. O resultado é um trabalho coeso, que não apenas reflete o momento criativo do artista, mas também sua relação genuína com a música e com o processo de construção artística. “Eu amo trabalhar com música e quero fazer isso pro resto da vida. E eu sei que é tijolinho por tijolinho. Quero aproveitar cada passo”, comenta.
Batemos um papo com Juliano Costa para entender melhor essa fase:
Como se deu o processo criativo do álbum desde a sua gestação? O que você idealizava para este terceiro trabalho?
Eu sempre tô com o violão, tentando compor. Todos os dias eu tento fazer uma música. Fico lá tocando qualquer coisa até que algo possa aparecer. A partir do ano passado, comecei a fazer músicas muito autobiográficas, coisa que não costumava fazer tanto. Achei que tinha uma unidade nessa leva de composições e comecei a trabalhar nelas. São músicas tão expressivas do momento, que eu quis gravar logo, do jeito que fosse possível, pra manter o frescor delas na gravação.
Ao longo do processo, gostei da ideia de ser um disco mais livre, no sentido de formato. De ser um retrato sincero. Eu gostei de deixar elementos do processo aparentes. Deixei alguns ruídos, as contagens, porta batendo, baqueta caindo, chuva. Como se fosse só um microfone ali aberto que gravou aquele momento. Eu quis registrar o clima dessa fase.
Quais suas maiores referências literárias e o que você estava lendo quando compôs o disco?
Eu compus esse disco na mesma época em que comecei a correr. E estava lendo Do que eu falo quando falo de corrida, do Murakami. É um livro muito massa e me influenciou nesse período. As minhas referências mais atuais são Alejandro Zambra, Marcelino Freire, Eliana Alvez Cruz e Miguel del Castillo.
Após integrar uma banda e já há alguns anos dedicado a uma carreira solo, como você avalia seu atual momento como artista? Qual o maior aprendizado você tirou ao longo desse tempo?
Eu acho que estou numa fase de valorizar o presente. De reconhecer as coisas boas que a música possibilita. Meu maior aprendizado tem sido o de não ter grandes expectativas a curto prazo, ter grandes objetivos a longo prazo e curtir o momento atual. Eu amo trabalhar com música e quero fazer isso pro resto da vida. E eu sei que é tijolinho por tijolinho. Quero aproveitar cada passo.
Confira o faixa a faixa:
“América do Sul“: É uma canção sobre o sentimento de pertencer a este continente. A vontade de conhecê-lo melhor, de continuar vivendo aqui, exaltando sua imensidão e sua complexidade. Uma música sobre as tristezas e as belezas da América do Sul.
Na primeira gravação, essa música estava muito mais lenta, e eu não encontrava um jeito legal de produzi-la. Chamei o Renato Medeiros pra me ajudar e ele acelerou o pitch, o que deu outra cara pro som, e a partir daí, continuamos a produção nesse novo ritmo. Salvou a música.
“O Filho do Vento“: É um recorte de várias coisas que não necessariamente estão conectadas, mas acabam formando um conjunto meio caótico, meio organizado. Tipo a vida real. Eu anoto no caderno frases e palavras que acho interessantes pra usar eventualmente em algum trabalho. Nessa música, resolvi reunir várias frases que tinha anotado, e tentei fazer uma colagem que desse algum sentido a esse conjunto. Essa música tem a participação do Caio Costa tocando guitarra. Nós tínhamos a dupla chamada Primos Distantes, então, foi uma boa lembrança estarmos juntos numa gravação novamente.
“Todo Amor do Mundo“: Eu acho um desafio falar de amor, escrever ou compor sobre o amor. Pra mim, é muito fácil cair nuns clichês, uns papos batidos, o que até pode ser massa, mas é arriscado.
Esta é uma música que fala sobre o acolhimento entre amigos. Sobre a formação de grupos que se ajudam em meio às aventuras da vida. Quando nos sentimos sozinhos e feridos, andando perdidos e encontramos um grupo que nos acolhe, nos protege e então passamos a ver a vida com outros olhos, vivendo em comunidade e cuidando uns dos outros. Ou, às vezes, acabo fazendo uma sofrência, mesmo sem estar passando necessariamente por isso, mas por ter um repertório de sofrências lindas da nossa música na cabeça e por ter mais facilidade em fazer umas canções assim.
Para esse disco, eu me forcei a compor de um jeito mais próximo do que eu tô realmente sentindo no momento. E escrevi uma música de amor sincera e positiva. Não exatamente sobre o amor romântico. Mas sobre o sentimento total de amor. Uma coisa geral que a gente sente por pessoas, bichos, músicas, momentos. É massa dizer “eu amo tal parada”. Esse gostar em outro nível. É um sentimento muito forte.
Tentei construir um contexto em que o personagem tá lá sozinho, meio perdido, e encontra um grupo de pessoas que se acolhem e se cuidam. Por isso fez muito sentido chamar a Luna França pra cantar essa comigo. Tamo aqui andando numa selva de coisas e acontecimentos e é bom encontrar pessoas no caminho que fazem as coisas e os acontecimentos serem agradáveis. A Luna é assim. E não estamos sozinhos nessa canção. Temos a alegria do Cauê Benetti cantar o refrão da música com a gente. Tenho muita sorte de encontrar essas pessoas.
“Quando a Noite Cai“: Essa é sobre um relacionamento que já acabou mas dá aquela saudade e vontade de uma última vez, uma despedida. Eu deixei o instrumental bem longo nessa música pra tentar reforçar a ideia de que o casal não quer que esse último encontro acabe. A música também demora pra acabar pra dar esse sentimento de prolongar ao limite.
Essa música não ia entrar. Eu já estava com o disco pronto e comecei a gravar ela pensando em um futuro single, talvez. Só que aí eu cansei de gravar música pra singles futuros, e ficar sempre pensando no futuro, e coloquei ela no Vida Real mesmo porque ela é de agora.
“Estrelas Solitárias em Constelação”: Essa música eu fiz para o Cauê Benetti. Ele fez uma festa na casa dele e eu acabei dormindo lá. No dia seguinte, de ressaca, ajudei ele a faxinar a casa e fiquei lembrando da noite anterior enquanto limpava a bagunça. Acabou a faxina, acabou a ressaca, e eu fiz essa música. É uma música bem verdadeira sobre o sentimento daquela noite e daquele dia seguinte. Chamei ele pra cantar comigo. É um registro de uma fase da nossa vida.
“O Mundo é Gigante“: Essa eu também chamei o Renato Medeiros pra me ajudar a produzir. Eu queria fazer com o teclado Casio algo que lembrasse um piano animado. É uma música sobre as infinitas possibilidades na vida. Sobre os muitos caminhos que podemos tomar ao longo da nossa existência. Sobre a esperança de sempre poder encontrar algo importante e valioso, mesmo quando não se espera nada. Na curva de uma esquina, você não imagina o que pode encontrar. Olhe ao seu redor.
“Sobre Tudo Bem“: Essa é bem autobiográfica. Acho que foi a última composição que fiz. Eu tava brincando com o violão e cheguei no começo dessa melodia e achei que valia a pena desenvolver ela a tempo de entrar no disco, já que é a mais “vida real” do repertório. Eu tentei passar dois “climas” pra música. Na primeira vez em que canto a letra, quis mostrar uma tristeza, depois, quando vem a parte instrumental, seria a passagem do tempo, e a mudança de sentimento. Quando canto pela segunda vez a letra, a ideia é mostrar uma energia, uma revolta contra a tristeza, uma vontade de estar bem.
“O Sol“: Essa é a mais contemplativa. É o momento de paz do disco. Uma das primeiras composições dessa leva. Eu fiz num sábado de manhã, enquanto tomava café. É um agradecimento por estar vivo e presenciar o sol, o mar, a lua, a chuva, o chão e a terra.
“O Vazio“: Essa é das tristes. Eu gosto da ideia de fazer amizade com o vazio causado pela ausência de alguém. Meio frágil mas meio forte. Não parece algo saudável a princípio, mas parece um recurso possível pro momento em que foi feita a música.
“Glória“: Glória é uma música sobre a importância do processo. Sobre como é bom aproveitar a caminhada, sem pensar exclusivamente no final, nos objetivos. Valorizar as pessoas que caminham ao nosso lado, os momentos inesperados, as surpresas, as experiências. Divido o vocal dessa música com Maria Tereza, também conhecida como Snowfuks. Uma pessoa que tive a alegria de encontrar por acaso no meio do caminho. Uma boa surpresa da vida. E fico feliz em caminharmos juntos nesta canção
“Eu Não Vou Deixar“: Eu gosto dela porque eu nunca toco piano, mas foi bom sentar no piano, ligar o gravador e tocar. Eu fiquei tocando em loop essa música por uns vinte minutos, gravando direto e, na hora de colocar no disco, escolhi um dos trechos. É daora porque é o registro em audio de um momento mesmo.
“Oração à Música“:É uma oração de agradecimento pela existência da música. Que de fato é a coisa mais importante na minha vida. É invisível, inodora, transparente mas tá totalmente presente na nossa rotina. Nos dias bons e nos dias ruins.