A última entrevista de Cassiano: “Respeito eu sempre tive”

16/09/2024

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Douglas Portari

Por: Douglas Portari

Fotos: Reprodução

16/09/2024

Um bicho estranho. Um ente que emergia de tempos em tempos da lagoa negra da música brasileira para encanto – e também inveja – daqueles que nadavam no rasinho. Acabou virando lenda, seu nome sucedido de interrogações de por onde andaria, quando não de afirmações sobre ter encontrado um ponto final. Não, lá estava o bicho novamente na superfície, tomando fôlego.

“Acho que tudo tem o seu tempo. A certeza que eu tenho é que o meu é agora. Antes eu não concordava muito com isso que os caras diziam, que eu era fora do meu tempo, que estava adiantado. Mas agora vejo que tinham razão. O Tim era o único cara assim que chegava mais, entendia, dialogava. O resto dizia: ‘o Cassiano é um bicho estranho’”.

*

Pois. Em 2001, Cassiano, esse bicho estranho da música brasileira, pensou que seu tempo havia chegado. Mas monumental e fugaz, foi só outro salto de jubarte seu. Ele não sabia disso, claro, e estava feliz. Do breve contato que o acaso me deu com esse paraibano de talento abissal, eu posso dizer isso. E também que ele se sentia vindicado por ser, finalmente, “entendido”. Infelizmente, esse tempo não durou.

Velho e acabado

Rememorar hoje o que se passou há 20 anos é um exercício que envolve alguma vergonha própria, muita indulgência e a certeza de que “estou ficando velho e acabado”. O convite para comentar o que parece ser a última entrevista de Cassiano, em seu suposto derradeiro trabalho de estúdio, é descer a Ladeira da Memória, essa pirambeira escorregadia e traiçoeira.

Para evitar descambar na autoficção (e no autoengano) fui atrás do registro, a fita cassete (há anos digo que vou digitalizar minhas fitas…) com uma hora de entrevista feita na casa de Bernardo Vilhena, dono da gravadora Regatas, na Gávea, Rio de Janeiro. Em uma tarde de sol, Cassiano, então com 58 anos, me esperava aboletado entre os membros da Banda Black Rio.

Adeus sonho de uma entrevista intimista, claro… Mas Cassiano cumpria com sua palavra, dada mais de seis meses antes. Não faço ideia hoje como consegui seu contato, mas à época, como repórter em início de carreira no caderno de cultura do Jornal da Tarde, eu cobria também um dos poucos movimentos que traziam sangue novo – e sangue nos olhos – à música brasileira, o rap.

Diagonal do tempo

Desde o início de 2001 eu tentava entrevistar o homem. O músico era dessas figuras que jornalista adora, um talento incrível, fora dos holofotes, e sendo redescoberto por uma nova geração. Havia, claro, sua outra fama também: arredio, esquivo, difícil. Mas não foi o que encontrei. “Não sei se eu tive de me reciclar também, melhorar, porque a gente vai se aprimorando, como pessoa, como profissional”. Talvez.

A insistência deu paga. Cassiano marcou nossa entrevista para a semana em que a Banda Black Rio, sob a batuta de William Magalhães, lançaria seu disco de retorno, Movimento. O paraibano assinava duas das faixas do álbum, além dos arranjos vocais e de base. “Foi uma maravilha, pareciam os velhos tempos, com Os Diagonais”. Ali, ele puxava o fio do início de carreira, nos anos 1960, quando seu trio de samba-jazz influenciado por Os Cariocas fazia vocalizações sofisticadíssimas.

A verdade é que Cassiano foi extremamente generoso com um jovem repórter que o assediava havia meses. Ele poderia falar com qualquer jornalão da época – não faltariam interesse e espaço. O finado Jornal da Tarde, que pertencia ao Estadão, tinha uma brava história, mas era um primo pobre na imprensa nacional. A única exigência do músico foi casar a entrevista com o lançamento do disco da Black Rio. No mais, manteve a promessa de conversar comigo. Quem sabe, simpatia pela persistência e pela figura do azarão.

Monocultura musical

Aqui cabe um parêntese sobre nosso panorama musical. Há décadas, a indústria cultural trabalha sob a dinâmica da “monocultura”. Há 20 anos, o axé destronava o pagode. Hoje, nosso canavial é composto de duplas neosertanejas, um bumbo uníssono que silencia qualquer outra vertente. Não entro no mérito da qualidade, a crítica aqui é à terraplanagem cultural, que arrasa com a paisagem musical e soterra o que não for a commodity do verão.

Além disso, na época, nosso armazém de secos e molhados andava meio devagar. Com raras exceções, o rock e o pop patinavam, usando a música eletrônica como muleta, enquanto os medalhões da MPB dormitavam em berço esplêndido, sem nenhum trabalho de fôlego. O toco irremovível na planície era o rap, a nota dissonante. E, como o samba, vindo da periferia negra, o rap foi um dos gatilhos para o interesse redivivo na soul music nacional.

Toda uma geração ligada ao soul pop despontava: Paula Lima, Max de Castro, Jairzinho, Simoninha, Luciana Mello, Pedro Mariano – muitos deles, herdeiros, como William Magalhães, filho de Oberdan, fundador da Black Rio. Houve assim um retorno para vários artistas da “Velha Guarda” – se não em shows e discos novos, em interesse por seu trabalho -, como Carlos Dafé, Gerson King Combo, Hyldon, Tony Tornado e, neste caso renovada, a Banda Black Rio.

Atento, Cassiano não via isso como uma volta, mas um “seguimento”. Uma linha evolutiva da música popular brasileira, apud Caetano/Raul? “Toda essa cultura negra tem muito a ver”, ele disse. Tem. Tanto que os Racionais tentaram uma aproximação com o compositor, que conheceram em um show da Black Rio, em São Paulo, em que Cassiano fazia uma participação. “Eles chegaram a me ligar, depois não ligaram mais. Eu tava à disposição”.

Era o início do novo milênio e lá estava o fio do trabalho de Cassiano e Tim Maia amarrando as vertentes da black music brasileira.

Os reis do grilo

A costura de soul com dissonâncias de bossa, mais samba, jazz, rock e ritmos nordestinos que marca o trabalho dos dois veio de Cassiano. A título de influências, ele falou de Glenn Miller, The Platters, Ray Charles, Nat King Cole, Elvis, Little Richards. “Aqui no Brasil, João Gilberto, Os Cariocas, Jackson do Pandeiro”. Deitava admiração também por forrós, xotes e baiões. “No Norte, tem altos músicos modernos. Dentro do estilo sanfona, altos caras bons”.

William Magalhães, que participou da entrevista em 2001, não tinha dúvida sobre a importância do paraibano na carreira do Síndico: “Eu acho que o Cassiano influenciou o Tim Maia”. Carreira que só estourou, em 1969, com “Primavera (Vai Chuva)”, de Cassiano, um single da Polydor que viu a luz do dia apenas quando Tim Maia bateu na mesa do diretor artístico da gravadora, André Midani (grande responsável, aliás, por mais de uma geração de artistas nacionais).

Tim e Cassiano se conheciam desde 1964 e, cada um na sua raia, batalhavam por espaço. A parceria mudaria a vida dos dois. “Eu cantava ‘Primavera’ pelos corredores das gravadoras, os caras diziam: ‘Ah, bicho, isso aí não dá certo, não. Grava música do Roberto Carlos’. Poxa, aí é aquela coisa do compositor, né? Eu posso até gravar uma do Roberto, mas essa aqui eu fiz. Dois anos depois, a música foi sucesso no Brasil inteiro”. A insistência deu paga.

Famoso pelo escrachos, Tim foi bater em outra mesa em 1979, a do diretor do hospital em que Cassiano estava internado para uma operação no pulmão. Tudo para ver o amigo. “Ele faleceu no mesmo hospital… quando ele estava lá, eu tomei uma garrafa de Chiva’s, sentado na cama, chorando e pedindo a Deus pra não levá-lo”. Por conta de direitos autorais, porém, os dois ficariam anos sem se falar na década seguinte. Tim até se recusou a participar do álbum Cedo ou Tarde, de Cassiano, lançado em 1991.

“Ele não quis, tava chateado ainda. Ele sempre foi muito grilado. Ele dizia que era o príncipe do grilo e eu era o rei, mas era ele o pior”. Resolveram os grilos?, eu quis saber. “A gente se falou uma vez por telefone. Depois eu estive em um show dele no subúrbio e ele me chamou para cantar ‘Primavera’. Quando eu já morava no Jardim Botânico, ele me ligou às três da manhã – aqueles horários dele – me convidando para um show em Manaus. Essa foi a última vez”.

O baú de Cassiano

Em 2001, fazia dez anos que Cassiano havia lançado Cedo ou Tarde – basicamente um disco de releituras. Eu o questionei sobre novas composições. “Ah, isso, meu amigo, é igual a trocar de roupa, é todo dia. Se você não fizer uma música, nem que seja uma notinha, parece que não tá bem”. Seu projeto, então, era lançar um disco de inéditas pela Regatas, numa coprodução sua com William Magalhães. Algo pop, à la Motown, segundo a dupla.

Não sei se chegaram a gravar alguma coisa. Cassiano e eu continuamos nos falando por mais uns três anos após essa entrevista. Nos telefonávamos ocasionalmente, comentávamos amenidades, o que estávamos ouvindo. Até que ele se mudou, eu me mudei, o mundo girou e perdemos contato. Mas ainda em 2002, eu o cutuquei sobre esse disco, pois havíamos combinado de fazer uma nova entrevista quando de seu lançamento. Ele não quis entrar em detalhes, disse apenas que o mundo da música era “complicado”.

Fato é que há material inédito de Cassiano pegando poeira por aí. “Eu tenho muitas músicas”, ele já avisava na época. Um caso famoso é o disco, com canções gravadas e mixadas, abandonado em 1978, em meio ao processo de falência da CBS. Hoje, ao menos, algo pode vir à tona. Logo após a morte do músico, em maio deste ano, Ed Motta anunciou que há gravações de 1994 que, se masterizadas, teriam o mesmo peso do álbum Cuban Soul, de 1976.

Breve primavera

Olhar para trás com o distanciamento do tempo traz perspectiva, a poeira assenta, as ideias decantam. Mas a posteriori, a gente tende também a criar narrativas para o acaso.  Cassiano afirmava não ter mágoas, estava feliz, havia dito – e acreditava – que aquele era seu tempo. 

E com razão. Ele tinha um disco em projeto, seus álbuns eram relançados, ele era convidado por outros artistas a participar de gravações, era requisitado e respeitado. “Olha, a música é uma coisa que toma tanto o nosso tempo que nem… e eu fico pensando, o que é o prestígio. É dinheiro? Fama, respeito? Acho que respeito eu sempre tive”.

Minha entrevista, cujo lead, a introdução, era medíocre e tinha como único mérito ser curto para dar espaço às respostas de Cassiano, trazia esse mesmo sentimento. O título, uma sacada linda do editor Coruja (perdão, Coruja, não me recordo seu nome), era “Cassiano vive novo tempo de primavera”. Na redação, lembro que ele se virou pra mim com um sorriso e perguntou: “O que acha?”. Eu bati o olho na página diagramada e soltei um “Perfeito!”.

Todos acreditavam que Cassiano vivia seu momento Cartola, de redescoberta. Essa primavera, porém, não vingou. Compositor, craque não só da harmonia vocal, mas do domínio rítmico, multi-instrumentista – “toco um caxixi, arranho umas coisas” – rei do soul… ele tinha um talento ciclópico, mas que trazia consigo, sempre, a sua contraface, arredia, esquiva, difícil. Sei também que a sua saúde já estava mais frágil à época e isso lhe traria problemas nos anos seguintes.

Não sei de seus ressentimentos. Reservado, ele nunca comentaria porque passou a recusar convites e começou a se afastar. Em algum momento, o bicho estranho da música brasileira decidiu mergulhar novamente em águas profundas e não mais voltar. Ainda tentei reencontrá-lo algumas vezes, a última, em 2020. Mas sem sucesso. Cassiano, porém, estava certo. Seu tempo é agora. Sempre.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 114 da revista NOIZE, lançada com o vinil Tim Maia Disco Club, do Tim Maia, em 2021.

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16/09/2024

Douglas Portari

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