O Festival Psicodália, que acontece todo carnaval em Rio Negrinho (SC), tem mais de vinte anos de história, mas nunca recebeu crocodilos em seu palco. Para a 21ª edição, que acontece de 9 a 14/2 de 2018, a organização resolveu trazer algumas amostras desses répteis para a Fazenda Evaristo – local onde habitam os seres psicodélicos desde 2010.
Junto de um grande time já confirmado para o evento, um dos grandes nomes da Vanguarda Paulista, Arrigo Barnabé, apresenta o show Claras e Crocodilos, que traz uma nova interpretação do primeiro disco da carreira, Clara Crocodilo (1980). Barnabé reescreveu todos os arranjos em busca de uma versão ainda mais rítmica e pulsante e, por promover um encontro de gerações e de gêneros, deu um novo nome ao show.
A banda de Claras e Crocodilos é formada por Ana Karina Sebastião (baixo e vocais), Maria Beraldo Bastos (clarinete e voz), Mariá Portugal (bateria e vocais) e Joana Queiroz (saxofone e vocais); além dos “velhos crocodilos”, como ele denomina, Paulo Braga (piano) e Mario Manga (guitarra).
Por telefone, conversamos com Barnabé sobre a Vanguarda Paulista, o nascimento desse show que apresentará e a convocação dos músicos, experiências em festivais, política e censura.
Como surgiu a ideia de fazer o show Claras e Crocodilos?
Isso aí já faz algum tempo que eu fiz. Se não me engano, em 2013 ou 2014 [foi em 2013] fui convidado para tocar em um festival em Santiago do Chile e aí eu falei para eles que tinha vários shows e perguntei qual queriam. Era um festival de vanguarda, chamava Festival de Vanguardia. Então eles disseram: “Queremos o repertório do Clara Crocodilo“. Eu estava fazendo um trabalho com uma banda de garotas, que se chamava O Neurótico e as Histéricas, e perguntei se elas não queriam fazer esse trabalho comigo. Três delas toparam fazer – Ana Karina, Maria e Mariá – e aí eu chamei os músicos que já estavam comigo há muito tempo, o Paulo Braga e o Mario Manga, e veio mais uma garota do Rio de Janeiro, que toca saxofone e canta, a Joana Queiroz. Então ficou “Claras e Crocodilos”, que são as meninas novinhas e os velhos crocodilos.
Você sempre foi reconhecido pela experimentação e o disco Clara Crocodilo é um bom, talvez o principal, exemplo disso. Como foi pensada a releitura do disco para o show?
Estávamos com uma formação nova e aí eu reescrevi os arranjos. Escrevi pensando nessa formação em que todas as meninas cantam, mas as solistas são a Joana e a Maria. Escrevi pensando em fazer uma coisa instrumental também.
A sua performance sempre foi descrita como teatral e irreverente. Essa característica continua no show Claras e Crocodilos? As meninas acrescentaram nesse aspecto, “compraram a ideia”?
Continua, sim. E elas compraram a ideia, claro. Elas são incríveis. Uma nova geração, nenhuma delas era nascida quando eu lancei o disco.
A Vanguarda Paulista sempre esteve ligada ao termo “música independente”, desligando-se de grandes gravadoras. Isso possibilitou essas experimentações?
Olha, isso aí (as experimentações) era uma coisa que estava acontecendo, sabe? A gente procurou as gravadoras, mas as gravadoras não queriam. Não era que a gente fosse contra as gravadoras, ninguém queria gravar as próprias coisas às próprias custas, fazer as coisas independentes. A gente fez isso porque as gravadoras não se interessaram.
E como era, naquela época, fazer música independente, sem as facilidades tecnológicas que temos atualmente?
Naquela época não tinha nada, era difícil. Era bem difícil. Você tinha que pagar estúdio e estúdio era caro. Tudo era complicado, tudo era complicado. E para piorar, a gente ainda vivia em uma ditadura, então era fogo.
Como foi fazer música nesse período, final de ditadura?
Tinha que mandar tudo para censura. Qualquer coisa que você fizesse você tinha que mandar para a censura. Todas as letras os caras tinham que aprovar. Era um negócio horrível. Era horrível.
E como os censores enxergavam a música de vocês? Sabe dizer?
Ah, era vista com muita desconfiança, né? Eu nem sei como é que eu consegui passar essas músicas na censura. O disco Clara Crocodilo tinha a música “Orgasmo Total”, né? “Orgasmo Total” a gente conseguiu liberar, mas não podia tocar em rádio. O aviso vinha escrito junto com o disco.
Há um ano, mais ou menos, eu entrevistei o Odair José e ele disse que hoje há, além da “censura da hipocrisia” no Brasil, uma censura disfarçada dos meios de comunicação, ao não darem espaço para divulgação de certos artistas, por exemplo. O senhor acredita existir essa censura camuflada?
Sempre existiu. Quem pauta as coisas? É o editor, e o editor com o chefe dele, e o chefe dele com o dono do jornal. Pega, como exemplo, os filmes: entra um filme nacional em cartaz, não ganha espaço nenhum. Entra um filme americano, o filme pode ser uma merda, mas sai uma página inteira do jornal. Isso sempre existiu.
Apesar de você ter começado a carreira já no fim da Era dos Festivais, eles foram importantes para impulsionar a sua carreira. Hoje, o Brasil parece estar voltando a uma boa época de festivais, principalmente os de música independente. Como o senhor avalia a importância deles?
É importante esse tipo de festival, como o Psicodália, que é uma coisa que existe a bastante tempo, pelo que eu fiquei sabendo. Isso desloca as coisas do eixo Rio-São Paulo, coloca essa produção em circulação. A minha filha Stella, de 19 anos, está querendo ir acampar lá (no Psicodália), está toda animada.
E qual a sua expectativa para o Psicodália? Você já tinha ouvido falar do festival?
Olha, eu não sei. Eu acho que vai ser o primeiro festival assim que eu vou tocar, sabe? Nesse tipo de festival eu acho que vai ser o primeiro. Eu toquei em alguns festivais organizados por aquele movimento Fora do Eixo (rede de coletivos culturais que nasceu em 2005), mas participei como convidado da banda Porcas Borboletas (MG). Agora, eu como convidado para tocar, eu toquei apenas num em Belo Horizonte (MG), faz uns dez anos. Mas no campo, uma coisa assim como o Psicodália, eu nunca fiz não. Eu acho que vai ser uma coisa meio Woodstock…
Muitos dizem que a Vanguarda Paulista é um movimento evolutivo do Tropicalismo. Outras nem consideram a Vanguarda como um movimento. Então…
(Cortando) Não era um movimento no sentido da gente ter se reunido e falado: “Ah, vamos fazer um movimento”. A gente estava produzindo uma música que tinha ruptura com o que era feito, mas claro que inspirados pelos compositores dos anos de festivais: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Edu Lobo, todo esse pessoal aí. Era uma geração muito talentosa. Então, nós estávamos procurando, cada um à sua maneira, um caminho, a partir disso. Então, tanto eu quanto o Luiz Tatit, do Grupo Rumo, e o grupo Premeditando o Breque, nós éramos da USP (Universidade de São Paulo), fazíamos o curso de Música lá na ECA (Escola de Comunicação e Artes). A ECA odiava música popular, era proibida pelo próprio diretor da escola, era uma coisa horrível. O Itamar (Assumpção), que veio de Arapongas (PR), ele estava em contato comigo, porque ele veio para São Paulo para ficar com a gente, ele era amigo do meu irmão, do Paulo (Barnabé). O Itamar queria fazer uma coisa menos de ruptura que a gente. Ele dizia, “minha música é muito popular”.
Era uma produção que tinha um caráter de ruptura e cada um fazia o seu caminho. Apareceu o Festival da TV Cultura (1979) e ali começa a Vanguarda Paulista. Eu, com a música “Diversões Eletrônicas”, que fiz com a Regina Porto, tirei o primeiro lugar e o Premeditando o Breque, o segundo. Então as pessoas começaram a saber que existia esse som e que era um negócio diferente. Aí teve o segundo festival, no final do ano, na Rede Tupi (Festival 79 de Música Popular), e eu entro com “Sabor de Veneno” (ganhou dois prêmios no mesmo festival). Aí, a partir disso, começa a ter espaço para gente e eu consigo montar a banda, a banda Sabor de Veneno. O Robinson Borba neste momento trabalhava como engenheiro em Londrina (PR), mas o sonho dele era fazer música e aí resolve produzir e vem para São Paulo. E ele monta essa estrutura para gente fazer a banda Sabor de Veneno e depois, quando as gravadoras realmente não se interessam, ele resolve ele mesmo bancar os custos da gravação do LP Clara Crocodilo.
E como foi distribuído, já que na época todo o processo, desde produção, gravação e distribuição, era feito pela gravadora?
Foi assim: cada músico recebeu 25 LPs como pagamento. Então era uma multidão, porque acho que eram 15 músicos na banda. Qualquer restaurante aqui da zona boêmia de São Paulo você via um músico vendendo LPs. Eles ficavam nos restaurantes para vender os LPs e o disco teve uma aceitação muito boa. Isso deflagrou o negócio e o pessoal do Lira Paulistana resolve fazer um disco do Itamar (Beleléu, Leléu, Eu – 1980). O pessoal do Rumo também resolve gravar, e foi por aí. A coisa começou a aparecer.
E foi realmente um movimento evolutivo do Tropicalismo?
É inspirado pelo Tropicalismo. Do ponto de vista de uma linha evolutiva da música brasileira, que vem desde a bossa nova e passa pelo Tropicalismo, nós estávamos tentando fazer algo que viria em seguida. Era a ambição da gente. O Tropicalismo existe por causa dos Beatles, do George Martin, vamos lembrar. Então, sem isso eu não teria feito esses trabalhos desse jeito, eu teria feito uma outra coisa. É tudo uma linha evolutiva.
Mas ao contrário do Tropicalismo, vocês utilizaram o marginal urbano como personagem para as músicas, falaram da decadência das cidades, utilizaram o humor em muitas letras…. Tudo era utilizado como uma forma de protesto?
Olha, a música “Clara Crocodilo” fala: “Quem cala consente, eu não me calo / Não vou morrer nas mãos de um tira”. É uma coisa que está muito ligada com esse negócio. E naquela época, tudo que fosse subversivo aos costumes era também subversivo à ordem política. Por exemplo, os gays, os transexuais, era uma coisa subversiva, porque era considerado um atentado ao pudor e à ordem pública. Eu lembro que tinha um grupo chamado Dzi Croquettes (grupo de teatro e dança) e era uma coisa altamente subversiva. Tanto que meu monstro é o Clara Crocodilo, eu o chamo de “o perigoso marginal”, mas o nome é de mulher. É um nome de mulher com um nome de homem, que tem a ver com Alice Cooper. Quando me falaram de Alice Cooper, lá em 1972/1973, eu perguntei se era homem ou mulher, e me disseram que era um homem que usava nome de mulher. Por isso o nome.
Eu conheci esse grupo de teatro e dança a partir de um documentário, Dzi Croquettes (2009), e eu imagino que eles seriam considerados subversivos até hoje.
Hoje em dia piorou. Hoje está uma coisa louca. Hoje em dia está um absurdo o que está acontecendo. É um absurdo. De repente a coisa fechou de uma maneira. Nossa, é uma loucura.
Falando nisso, como o senhor tem visto o cenário político atual, com tanto conservadorismo e retrocesso?
É preocupante. Eu acho que criaram uma divisão no país e um ódio que não existia antes. Não existia, você não identificava a pessoa como seu inimigo mortal, era apenas uma pessoa que discordava de você. Aqui em casa, por exemplo, eu votei na Dilma e minha mulher votou no Aécio. Não tem problema, a gente vive junto e ninguém briga por causa disso. Antigamente você convivia com isso.