“Já faz tempo que me incomodo com a maneira como o streaming tem tratado a música e os artistas”, conta Luiza à NOIZE. A artista vive uma nova era pós-Inky, o projeto que a consagrou na cena independente. Agora, cantando em português, virou MADRE e pariu um primeiro disco solo, Vazio Obsceno (2024), de uma forma diferente de tudo o que você vê por aí: o álbum foi lançado nas plataformas digitais em 14 de novembro, mas irá se autodestruir, desaparecer do streaming, para ser eternizado em vinil. Quem quiser ouvi-lo pela posterioridade vai precisar recorrer à boa e velha mídia física.
O disco sai pelo selo Seloki Records com coprodução de Luccas Villela e direito a um manifesto, publicado em suas redes sociais. Para Luiza, é uma forma de posicionar-se contra tudo o que o capitalismo ajuda a desmanchar, inclusive na arte. Vai contra a “precarização do trabalho, o consumo de música como algo descartável e a forma com que a carreira musical se torna cada vez menos sustentável”, conta ela. “Parece uma lavagem cerebral que faz com que a gente trabalhe para o digital, resumindo nosso trabalho e relação com os ouvintes a números”, explica à NOIZE.
“Sinto falta de retomar a relação dos ouvintes com a mídia física, com a parte sensorial de realmente tatear o disco, sentir o cheiro, ver o encarte, folhear. Acho que parte da cultura de consumo da música como algo descartável também vem do fato de não ser mais algo material”
Na sonoridade, o álbum abraça as referências da artista, um pós-punk industrial com um toque de psicodelia brasileira. O álbum é denso, o que se manifesta tanto pela sonoridade das guitarras, pelo peso da cozinha e pelas letras assinadas pela própria.
Na essência, é um disco fruto do isolamento social — foi idealizado ainda na pandemia, quando Luiza tinha apenas a companhia de sua guitarra. O instrumento, novo para ela, tornou-se uma nova amiga com quem ela rapidamente ganhou intimidade. O processo de composição também mudou, já que, na Inky, ela cantava em inglês.
“Eu achei que tinha me aposentado da música, mas não teve jeito. Também tinha vontade de explorar outros caminhos e de realmente re-começar e deixar as pessoas me verem fazendo algo novo e pela primeira vez; errar, me colocar de forma vulnerável como artista sem tentar sustentar qualquer ‘status’ que eu pudesse ter construído com a INKY”, conta.
Os singles “Transe” e “Caos” foram os primeiros apresentados ao mundo, ainda em 2023. Já faixa que abre o disco, “De um Jeito ou de Outro”, não poupa o ouvinte: mostra a densidade do som que nos guia ao longo dos quase 30 minutos do disco. “Lá Longe no Espaço” tematiza o céu para além da Terra, e tanto pela temática quanto pela vibe sonora, faz um aceno à fase mais pesada de Rita Lee.
Mas ninguém melhor que a própria Luiza para nos guiar pelas canções de Vazio Obsceno. Leia o Faixa a Faixa abaixo:
“De um jeito ou de outro”: Quis abrir o disco com um riff, acho que dá o tom do disco, que é centrado na guitarra. Essa é uma música que fala de ressentimento, de se sentir injustiçada e confiar na vida pra se encarregar de dar o troco. É sobre vingança, também. Pra mim, esse riff tem algo do blues punk que a PJ Harvey e o Jack White fazem. E usei “when the levee breaks” do Led Zeppelin como referência pros efeitos de voz e para o que eu queria em termos de mixagem
“Lá Longe no Espaço”: Quase foi a música que abre o disco, achei que ia ser divertido abrir em fade in, mas acabei gostando dela mais na segunda posição. É um mantra trevoso, um devaneio místico esotérico e que eu e Alejandra criamos muito durante a mix também. Acho que é a música que mexemos mais no arranjo durante a mix. Criamos até um “Drop” de música eletrônica no meio, distorcemos os pratos, as dobras de voz… É parte da minha experimentação usar o rock como linguagem, mas com recursos de outros gêneros, como a música eletrônica, que sempre foi referência pra mim.
“Transe”: Uma música sobre desejos reprimidos. Compus durante o isolamento social (Assim como todo esse disco). Em um dia chuvoso, comecei a descrever a cena que eu estava vendo ali. O vento batendo e espalhando as cinzas do incenso que tinha acendido, a chuva caindo… e, nisso comecei a escrever sobre o sentimento de privação, de ver a vida acontecendo e não poder desfrutar; e aí escrevi esse refrão e, da forma como cantarolei, ele ficou. Acho que falar também sobre sexo de uma forma mais agressiva e imperativa, aqui, fez sentido. Foi assim que me expressei inconscientemente e assim quis deixar. Pesei bastante a mão nas guitarras e no Bass VI que eu queria que fosse um baixo quase de doom metal. Ela precisava ser agressiva pra fazer sentido.
“Caos”: A primeira música que fiz pra esse disco. Pra mim, esse riff do começo parecia uma marcha fúnebre e, como na época se falava de morte o tempo todo (nos jornais e no dia a dia), resolvi escrever sobre esse tema.
“Tento”: A balada do disco. Quando escrevi, quis fazer um refrão que fizesse contraste com os versos bem melódicos e que fosse mais quebrado e instrumental. Usei de referência na mix as guitarras do Nirvana para chegar num timbre que fizesse sentido pra esse momento. Tentei explorar bastante os contrastes nesse disco.
“Azul Imenso”: Uma música sobre encarnar, sobre a mãe como essa nave que traz a gente – de algum lugar – para a Terra. Num fluxo de consciência, escrevi essa letra e, nela, falo um pouco sobre essa minha linhagem feminina, esse “pacto lunar de sentimento”. Essa música é mais psicodélica. Quis, inclusive, que soasse como se tivesse embaixo da água, pra criar uma paisagem sonora.
“Fantasma”: Esta é sobre apatia e sobre virar um fantasma de si mesmo. Na época, sentia que precisava não de um exorcismo, mas que alguém invocasse minha alma de volta pro meu corpo. Para eu me sentir viva de novo. Essa tem um recurso divertido na composição: eu uso uma descida cromática no refrão em que eu falo “o fantasma sou eu e de medo eu não morro”, em homenagem ao Fantasma Da Ópera. Achei que ia ser um easter egg legal para essa música.
“Sirenes”: Escrevi “sirenes” um dia em que me angustiei muito vendo a quantidade absurda de ambulâncias que passavam na minha rua e com a luz vermelha que invadia minha casa -acabei até usando esse vermelho como parte da minha identidade visual. Essa foi a única música que eu e Luccas construímos no estúdio. Eu sabia que queria muitas camadas de voz e de tudo. Acabei trabalhando nela mais com a Alejandra nos improvisos de voz e nos synths que gravei depois.
Quis deixar um pouco do que eu fazia na INKY (esse arpeggiator no sintetizador) só para os últimos 30 segundos do disco e fechá-lo assim.
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