Esta matéria foi publicada originalmente na edição 119 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Hermeto, de Hermeto Pascoal, em 2021.
“A música sou eu. Eu sou a música. Sou um camarada que nasceu música. Desde criança, eu sou assim: eu escutava um latido e achava que aquilo ali tinha uma nota, uma afinação. Eu nasci afinadinho”, diz Hermeto Pascoal. Após sete décadas de atividade musical intensa e ininterrupta, o alagoano conquistou um espaço único, sendo reverenciado por sua inventividade e talento pelos maiores instrumentistas do mundo. Hoje, é possível ler textos sobre ele em português, inglês, espanhol, francês, italiano, japonês, russo…
Aos 85 anos, Hermeto Pascoal tem fãs em toda parte.
Sã loucura
Sua história começa em 1936, em Olho D’Água Grande, na região de Lagoa da Canoa (AL), onde nasceu e passou seus primeiros anos. “Não tinha música, não tinha energia elétrica, não tinha nada. [Esse contexto] me ajudou muito, porque era tudo muito criativo”, conta Hermeto.
Na ausência de rádios e vitrolas, a música que existia na sua infância era somente a executada ao vivo, por humanos e animais. Sua família trabalhava na roça, mas, devido ao albinismo, ele não podia ser muito exposto ao sol e não participava dessas atividades. Em vez disso, passava muito tempo assimilando a polifonia das matas, o que foi a sua primeira e grande escola.
Mas Hermeto nasceu em uma família super musical. Seu irmão, José Netto, tocava acordeão e era seu parceiro. Seu pai também era acordeonista e tocava em bailes da região, já sua mãe cantava no coral da igreja de Lagoa da Canoa. Tudo isso o influenciou, porém seu ouvido nunca se ateve às convenções: Hermeto sempre ouviu música onde as outras pessoas não ouviam.
Tal capacidade é um dom que situa Hermeto entre dimensões paralelas, como se vivesse com um pé em cada realidade: a material, mundana e a transcendente, musical. “Eu nunca me senti criança, espiritualmente falando. Por isso, sou o cara perceptivo que sou até hoje. O espírito não tem idade e eu já sentia isso, sem [ter lido em um] livro. As pessoas também sentiam em mim uma coisa que eu passava”, afirma.
Desde sempre, sua percepção deixou perplexo quem estava ao redor. “Minha mãe pensava que eu estava com um problema, porque eu ficava batendo nos ferros que meu avô fazia”, lembra Hermeto referindo-se às sobras do trabalho de seu avô, que era ferreiro: “Aí, minha mãe foi chorando chamar o pai dela pra dizer que eu estava doido”.
“Eu tinha sete pra oito anos. Meu avô via eu carregar os ferros [que iriam para o lixo], mas não pensava no som. Aí, ele ficou impressionado ao escutar eu batendo um ferro contra o outro procurando uma melodia. A partir daquele dia, eu não era mais tido como uma criança louca. Eu não deixava de ser meio louco, na cabeça deles, mas um louco sadio”.
Entrando em cena
Hermeto tinha 14 anos quando foi trabalhar como músico em Recife (PE), em 1950. Lá, sua musicalidade conquistou o público e os colegas de profissão. Ao longo da década, ele conheceu amigos importantes, como Sivuca, e construiu uma carreira como acordeonista e pianista de rádios e orquestras na capital pernambucana e em João Pessoa (PB). Em 1958, mudou-se para o Rio de Janeiro, tocando com artistas como o Maestro Copinha, e, em 1961, transferiu-se para São Paulo.
A partir daí, sua atividade profissional adquiriu outro ritmo. Hermeto conseguiu emprego na importante boate Stardust, cujo proprietário era o pianista russo Alan Gordin, pai do guitarrista Lanny Gordin. Na Stardust, ele conheceu a cantora Flora Purim, que, por volta de 1965, começaria a namorar o baterista e percussionista Airto Moreira.
Apesar de existir a informação de que Hermeto teria gravado acordeão na faixa “Adeus, Maria Fulô”, em registro de Clóvis Pereira, em 1956, foi a partir dos anos 1960 que ele ganhou mais intimidade com os estúdios de gravação. Em 1964, tornou-se membro do Conjunto Som 4, ao lado de Papudinho (pistom), Azeitona (baixo) e Edilson (bateria). O grupo fez apenas um LP e, nele, Hermeto tocou piano e flauta.
No ano seguinte, ele passou a ser o pianista do Sambrasa Trio, que foi o novo nome que o Sambalanço Trio assumiu após a saída de César Camargo Mariano e a entrada de Hermeto. Completavam o time Airto Moreira (bateria) e Humberto Clayber (baixo). Seu único LP, Em Som Maior (1965), foi o primeiro registro da parceira de Hermeto e Airto e lançou a primeira composição de Hermeto gravada, “Coalhada”.
Em 1966, Airto se uniu a Heraldo do Monte, Théo de Barros e Hermeto em um grupo planejado para acompanhar Geraldo Vandré, que estava montando um show patrocinado pela multinacional Rhodia. Conforme Airto conta, Hermeto foi proibido pela marca de participar da apresentação por causa de sua aparência, e por isso o conjunto começou sem ele, chamando-se Trio Novo.
Quando Hermeto entrou de vez, nasceu o lendário Quarteto Novo. O conjunto gravou, em 1967, um importantíssimo LP homônimo, que traz duas composições de Hermeto (“O Ovo” e “Canto Geral”, essa última em parceria com Vandré). Airto foi substituído por Nenê quando se mudou para os Estados Unidos e o grupo seguiu tocando até 1969.
Após o fim do Quarteto Novo, Hermeto participou da banda Brazilian Octopus, formada para fazer a trilha de um desfile de moda, novamente, da Rhodia. O projeto tinha nove membros e lançou um único LP homônimo em 1969. Hermeto não aparece na capa, mas tocou flauta no álbum, que traz duas músicas suas: “Rhodosando” e “Chayê”. Esse foi seu último registro no Brasil antes da viagem que redefiniria sua carreira.
Um LP com seu nome
Na Stardust, Flora Purim ganhou uma passagem para Nova York e usou-a para ir morar nos EUA no final de 1967. Seu namorado, Airto, ganhou de Chico Buarque o dinheiro para o voo e largou o Quarteto Novo para viver com Flora pouco após ela ir. Lá, o casal não demorou muito para conhecer grandes músicos de jazz e tocar com eles. Em 1969, Flora gravou com Duke Pearson e tocou com Stan Getz. Na mesma época, Airto entrou para a banda de Miles Davis.
Em 1970, o casal convidou Hermeto para passar uma temporada com eles em Nova York, e essa viagem tornou-se um marco na carreira do alagoano. “O Airto Moreira e a Flora Purim fizeram tudo pra mim lá, traduzindo e tudo. Aí, fui conhecendo um monte de coisa. Estive na casa do Miles Davis, conheci esse povo todo”.
“Fui na casa dele, como convidado, com meu violão, e mostrei muitas coisas. Ele ficou maluco! Falou: ‘Ah, se eu pudesse, gravava tudo’. Aí, eu falei [para o Airto]: “Fala pra ele que eu vou gravar um disco aqui e, mesmo se ele quisesse gravar todas, eu não ia deixar. Seria duas, três, que eu escolheria’. Aí o Airto Moreira falou pra ele, ele riu e me chamou de doido. Albino louco! Ficamos com uma amizade maravilhosa. Senti que éramos dois irmãos espirituais que só faltavam se encontrar aqui na Terra pra se abraçar”, diz Hermeto sobre o encontro com Miles.
Em Nova York, na metade de 1970, ele gravou três músicas suas (“Little Church”, “Selim” e “Nem Um Talvez”) no Live-Evil (1971), um dos álbuns mais importantes do trompetista; O episódio rendeu polêmica, pois a autoria de Hermeto não foi creditada quando o disco de Miles foi lançado.
Na mesma época, Airto conseguiu um contrato para gravar seu primeiro disco solo, Natural Feelings (1970), e Hermeto participou bastante da gravação desse LP e do seguinte de Airto, Seeds On The Ground (1971). Em Los Angeles, Airto e Hermeto ainda gravaram o disco Cantiga de Longe (1970), de Edu Lobo, cujos arranjos são de Hermeto.
Após abrilhantar tantos discos, o alagoano finalmente teve a oportunidade de gravar seu primeiro álbum solo. A gravadora que lhe abriu as portas foi a recém criada Cobblestone, um pequeno selo criado por Joe Fields como subsidiária da Buddah Records. O disco de Hermeto foi o segundo LP lançado pelo selo, que, apesar de relativamente modesto, ofereceu ao brasileiro grande estrutura.
Chamado apenas Hermeto, o disco foi gravado no A&R Recordings Studios, em Nova York, e produzido por Flora e Airto, que também participaram das gravações, respectivamente, cantando e tocando bateria e percussões. Hermeto tocou piano, flauta e piano elétrico. Além de ser responsável por todas as composições (exceto “Flor do Amor”, que é do seu irmão) e todos arranjos, ele também regeu, ao lado do maestro Art Koening, uma orquestra de 32 músicos, formada por alguns dos melhores instrumentistas da cidade.
E quem assumiu o baixo foi ninguém menos que Ron Carter, que, segundo Hermeto, teve o importante papel de convidar a orquestra presente no LP. “Os músicos que participaram foram escolhidos por um dos maiores contrabaixos de todos os tempos, o Ron Carter. Lembro que eram músicos muito famosos, como o Thad Jones”, diz.
Hermeto se diverte muito ao lembrar da experiência de tocar com o contrabaixista: “O Ron Carter é um músico solto. Eu gosto de músicos assim, criativos! Pra poder ficar no meu nível, pra gente se soltar e sair criando. Quando ele me conheceu, nós tocamos e ele ficou maluco. E eu também gostei muito do jeito dele de tocar. Na gravação de ‘As Marianas’, teve uma hora que ele não aguentou, estava tocando o baixo acústico, aí fez assim pra mim [mandando um beijo]. Eu falei para o técnico deixar, não tirar o som”.
Na época, Hermeto ainda não dominava a teoria musical e não sabia escrever as partituras das suas composições. “Ali, eram os meus primeiros arranjos. É impressionante, modéstia à parte, que o nível tenha sido daquele jeito”, comenta. “Eu fazia [as partituras de cada instrumento] como se eu estivesse ensaiando com um conjunto vocal. De ouvido. Depois, convidava uma pessoa que sabia a teoria pra escrever pra mim, porque eu não sabia”.
“Eu brincava com os músicos, com os violinistas, porque eu estava muito feliz que eram os meus primeiros arranjos e eles estavam admirando, um apontando para o outro: ‘Olha, que coisa linda’… Eu não dizia que eram meus primeiros arranjos, né? Porque já estava assustando demais, era bom demais. Se dissesse, eles não iam acreditar. Então, fiquei na minha”.
Hermeto nunca teve uma educação musical formal e a originalidade de suas criações deixava todos boquiabertos. “Os músicos viam que não era nada copiado de teoria. Eu não escrevia igual aos outros, eu escrevia como eu queria mesmo e como eu sentia. E escrevi coisas que eles não estavam acostumados. Eu não falava inglês, aí, eu botava na partitura: ‘Larga o pau’. E eles não sabem o que é ‘larga o pau’, nem eu sei! Aí, eu dizia para o Airto: ‘Olha, diga pra eles escutarem o som, usarem a imaginação e fazerem o que quiserem. É livre!’. Quando aprendi a palavra ‘free’, aí eu mesmo já dizia: ‘Free! Free!’”.
“Eles se admiravam, porque achavam que o que eu fazia era o que eles gostariam de fazer também”, explica Hermeto sobre a impressão que ele causou nos americanos: “De ser o músico que eu sou, com frases não esperadas por eles. O jazz é uma coisa maravilhosa, uma música clássica, mas é igual, é padronizada, bem teórica. Todo mundo praticamente já sabe a frase que o outro vai fazer. É um improviso bem estudado”.
“No meu caso, eu nunca quis ‘saber’, eu quis ‘sentir’ as coisas”, teoriza: “Você não pode esquecer que você existe. Se ler um livro, você não tem que querer copiar o livro, ficar decorando. A música é assim também”, ensina Hermeto: “A criação é você deixar a mente solta sempre. Até hoje, se fizer qualquer coisa, eu não premedito nada pra não dificultar a minha criação”.
Chama atenção que, estando longe de sua terra natal, Hermeto Pascoal tenha se conectado às histórias de sua querida Lagoa da Canoa para nomear as músicas do seu disco. “Alicate” era um instrumento que seu avô fabricava como ferreiro. “As Marianas” refere-se à ordem das freiras marianas e às histórias que ele viveu na igreja situada em frente à sua antiga casa. “Guizos” eram instrumentos comuns nos animais presentes no seu cotidiano rural. Já “Velório” encena os ritos funerários que aconteciam na sua cidade.
Mas ele explica que seu processo criativo não acontece desenvolvendo uma composição a partir de um tema, na verdade é o contrário. “Nunca ponho nome nas músicas antes. Só ponho nome quando escuto o som que eu escrevi, o que eu chamo de batismo da música”.
Ainda que possa ser classificado como um disco de jazz, a música livre de Hermeto sempre foi além dos rótulos. O som de Hermeto une elementos de todas as culturas que ele vivenciou, da bossa ao forró, do jazz ao samba, e essa característica permaneceu em toda sua discografia posterior. “É o meu primeiro disco e você vê que consegui fazer vários estilos em um disco só. A pessoa que escutasse uma faixa e, depois, escutasse outra não ia saber que era do mesmo arranjador”, comenta.
Além do virtuosismo, a experimentação típica de Hermeto Pascoal já estava registrada ali. Três anos antes de Herbie Hancock gravar sons de garrafas de vidro no álbum Head Hunters (1973), Hermeto já tinha feito isso em “Velório”. “Eu já fazia na minha terra, tô sempre brincando com garrafas. Eu toco, pego uma, pego outra. A ideia foi justamente passar essas coisas para a música”.
Quanto à fotografia da capa do disco, em que Hermeto está rodeado de instrumentos, ele lembra que a cena surgiu em um momento de pura alegria. “Aí, me deu vontade, porque eu sou brincalhão, de me deitar no chão. Eu me deitei, os técnicos me viram e queriam chamar ambulância! Aí, o Airto chegou e disse: ‘Não, não, ele tá de brincadeira’… Aí, [o fotógrafo Hal Wilson] subiu em uma cadeira para tirar a foto”.
Feitiço do tempo
Hermeto foi lançado em 1970 nos EUA (no Brasil, o disco saiu apenas em 1978, com capa e ordem de faixas diferentes) e seu lançamento foi extremamente influente. O alagoano conta que o saxofonista Wayne Shorter promoveu um encontro em sua casa reunindo vários músicos de jazz para ouvir seu álbum assim que foi lançado.
“E eles se achando os tais, mas comigo ficava todo mundo admirado. Eles se admiram mais com essa música porque eles ouvem falar que o Brasil é um dos países mais subdesenvolvidos do mundo. Mas politicamente, né? Na música, não adianta, o mais forte do mundo é o Brasil”.
“Esse disco ficou muito famoso”, diz Hermeto: “Toquei muitos shows com esse trabalho e tô muito feliz de vocês fazerem [a reedição do LP], porque é como as escadas. O cara esquece que anda em uma escada. E, na escada, o coitado do primeiro degrau é o que segura a barra”.
Hermeto diz que, após o lançamento do LP, os executivos da gravadora Cobblestone insistiram para que ele ficasse no país por mais tempo. “Queriam que eu demorasse o máximo possível nos EUA, de tanto que eles gostaram do disco. Fui convidado para pegar minha família e levar para lá, com casa, com tudo por conta deles. Eles disseram: ‘Você tem que trazer sua música para os EUA’”.
“Quando falaram isso, lembrei do Brasil mais ainda. Eu não sairia nunca porque sinto falta do povo. Não que seja diferente do povo do mundo, mas é aqui que eu nasci… Então, tenho que ficar aqui. É o que eu gosto. Nunca quis sair. Aí, eu disse que não queria, mas fiquei tendo o mesmo tratamento sempre”.
Além de voltar ao Brasil com seu LP na bagagem, Hermeto retornou com o visual que se transformou em sua marca registrada. “Eu fui pra lá de cabelo curto e fiquei um tempo pra fazer o disco. Como eu não podia falar inglês, fiquei com vergonha de ir cortar o cabelo, aí cresceu demais. E comecei a me adorar”, lembra.
“E foi muito bom. Na época do cabelo curto, eu ia fazer programa de televisão e botavam eu tocando flauta, mas só apareciam minhas mãos. Meu rosto, não mostravam nunca. Quando o cabelo estava nos ombros, só dava a minha cara! Meu cabelo fez um bem muito grande para a minha imagem”.
Perguntado sobre a importância daquele lançamento, ele pondera que os limites do tempo não se aplicam à sua obra. “Tem um ditado antigo, que meu pai usava muito: o que é bom já nasce feito. A importância do Hermeto hoje e do Hermeto daquela época é a mesma. Quando falo agora, eu tô vendo aquele tempo. Não tem esse negócio de ‘passado’. Falando com você, me vem aquilo que ficou rodando com o vento. O vento, que dá lá, dá aqui e dá lá. A minha música, que chamo de música universal, é como o vento, como o céu, como as estrelas e o ar que a gente respira”.
“Ninguém vai achar uma música minha desatualizada. Porque ela é universal. Em tudo que eu faço, sempre pensei no povo, nas gerações. Pra mim, a música daquela época é como se fosse feita hoje. Eu sou um criador. Pra mim, o que envelhece são só coisas físicas. A minha música está voando. Ela nunca envelhece”.
Mais de 50 anos se passaram desde que Hermeto gravou seu primeiro disco, mas é evidente que o entusiasmo do músico segue intacto. “É uma coisa espiritual. Eu digo sempre, as coisas mais fortes, mais importantes, estão acima da gente”. E como se sente hoje? “O Hermeto está a mil por hora”, diz.
“Tô aqui com meus 85 e não sinto o peso da idade. O Hermeto de hoje é o de antes e o de antes é o de hoje. E os dois estão sempre juntos. E quero dizer a novidade! Deus me deu mais 53 anos de vida. Tá bom? Não quero ter mais de 130 anos, não… Tá louco? (risos) É isso aí, bicho. A minha alma tá aí, não morre nunca”. Sem dúvida alguma, Hermeto Pascoal é uma entidade, um ser feito de som, que habita mundos onde os relógios e calendários não fazem mais sentido do que as suas partituras coloridas.”
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