Esta matéria foi publicada originalmente na edição 113 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Elza Soares, de Elza Soares, em 2021.
A fumaça dos cigarros acesos dentro do teatro combinado à evaporação do suor dos corpos que bebiam, dançavam e cantavam, produziam um vapor denso, quente e, ainda sim, convidativo. Sob o pretexto do insuficiente ar-condicionado – e apoiados no privilégio patriarcal – os homens frequentemente circulavam sem camisa pelas arquibancadas. Com uma divisão quase inexistente entre palco e plateia, a meia arena do Teatro Opinião, situado em Copacabana, na rua Siqueira Campos, número 143, parecia se dilatar. A simbiose era digna de roda de samba, algo que nenhum palco italiano se atreveria a ser. A razão para tamanha agitação tinha nome: Noitada de Samba.
Segunda-feira com S de Samba
Contribuir para o reconhecimento do samba pela opinião pública, levando compositores de morros e periferias cariocas para os holofotes da elite cultural carioca. Esse era o desejo de Jorge Coutinho, ator, produtor cultural e idealizador da Noitada de Samba, espetáculo organizado por ele em parceria com o também ator Leonides Bayer. Iniciada em 1971, a iniciativa ocupava a programação das segundas-feiras no Teatro Opinião, em pleno bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. De acordo com o livro Noitada de Samba – Foco de Resistência (2009), organizado por Cély Leal e Márcia Guimarães, foram realizadas 617 edições ao longo de 13 anos de atividade.
As segundas-feiras passaram a ser sinônimo de samba de raiz no palco do Opinião. Uma verdadeira ode ao samba, gênero marginal e marginalizado, durante a década mais ferrenha da Ditadura Militar no país. Empreitada corajosa e nada ingênua de Coutinho. Integrante do CPC, o Centro de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes, a UNE, ele já havia organizado o Cartola Convida, série de apresentações do lendário sambista ao lado de outras lendas, como Donga e João da Baiana. Na década de 60, Jorge produziu com êxito um lançamento de Nelson Cavaquinho nas dependências da PUC-Rio. O CPC foi interrompido pelo ataque sofrido à sede da UNE, localizada na Praia do Flamengo, número 132, incendiada por militares no lamentável 1º de abril de 1964. Entretanto, seguiu como fagulha criativa tanto para as Noitadas quanto para o próprio Opinião, que as receberia.
O teatro carioca ganhou esse nome justamente por ter abrigado o emblemático show Opinião e ter se tornado a sede do Grupo Opinião, o coletivo de artistas que se formou após o lançamento do show de mesmo nome. Espetáculo e espaço físico se confundem, já que o teatro foi montado no final de 1964, em uma sala dentro de um shopping especialmente para receber o show. Quem explica é Ferreira Gullar em artigo publicado em 2006 na Folha de S. Paulo:
– O novo teatro consistia num estrado de madeira no centro da sala e, em volta, velhas cadeiras que haviam pertencido a um cinema de São Paulo e que nos chegaram cobertas de lama. Passamos uma tarde e uma noite lavando-as e montando-as, com a ajuda de dois marceneiros.
O Show Opinião, estrelado por Zé Keti, João do Vale e Nara Leão, depois substituída por Maria Bethânia, surge como uma ação velada do extinto CPC, explica Gullar. Entre seus organizadores, além dele, estavam Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e João das Neves. O grupo montado em 1964 foi se desfazendo com o tempo, mas o espaço continuou sendo um ponto cultural importante e João das Neves era o responsável pelo Teatro Opinião em 1971, ano em que a Noitada de Samba foi inaugurada.
Em entrevista à NOIZE, Coutinho aponta o oferecimento do espaço na programação do Opinião nas segundas como um gesto de pagamento por uma dívida: “O Opinião tinha uma dívida comigo porque escrevi e dirigi a parte da Nara, do Zé Keti e do João Vale e não ganhei nada. Vianinha me pediu para que eu fizesse isso, essa parte popular [do espetáculo]”, diz Jorge.
O samba já se mostrara bem-vindo no teatro, uma vez que lá, ainda na década de 60, foi realizada a Fina Flor do Samba, espetáculo que contou com direção de Tereza Aragão. Mas para a formalização do uso do espaço para as Noitadas, era necessário que um dos produtores possuísse firma reconhecida em cartório, exigência que Bayer cumpria. Com seu aceite, Coutinho seguiu com os detalhes da produção da Noitada de Samba, que estava cada vez mais próxima de ser realidade. Ele recupera:
– Falei com a Zica, mulher do Cartola, e falei com Cartola, que topou. A Zica faria a comida na casa dela e levaríamos para o teatro. As pessoas iriam lá para se divertir, comeriam a comidinha da Zica e ouviriam uma excelente música popular; foi assim que surgiu a Noitada. Como eu sabia que Cartola sozinho não atrairia público – que era aquele da Zona Sul -, chamei Clementina de Jesus e Xangô da Mangueira, raízes do samba que o povo da Zona Sul não conhecia.
A primeira Noitada de Samba no Teatro Opinião aconteceu no dia 2 de novembro, feriado de finados. Em depoimento para o documentário Noitada de Samba: Foco de Resistência (2010), Coutinho conta que Cartola não queria cantar em pleno “dia dos mortos” e que Zica achava que ninguém iria aparecer no espetáculo. Para testar a fé de Jorge, aquela segunda-feira foi tomada por uma chuvarada que alagou a Siqueira Campos. Contudo, a chuva parou e o teatro encheu foi de gente mesmo. Começava ali uma trajetória de sucesso.
Termômetro e trampolim
Não era raro ver a fila da bilheteria do Opinião dobrar o quarteirão nos dias de Noitada. Além de Jorge, quem acompanhava isso de perto era Cély Leal, jornalista e produtora cultural que, a partir de 1978, trabalhou como bilheteira do espetáculo e, em 2010, preservou a memória do evento em livro e filme. Segundo ela, apesar da muvuca e da correria, o ambiente era de muita paz, a ponto de nunca ter presenciado uma briga sequer. O público, em suas palavras, era “uma mistura só”: “Tinha preto e tinha branco. O ingresso não era caro, então tinha empregadas domésticas, policiais, mas também doutores, embaixadores; tudo o que você possa imaginar, tava lá”, elucida.
Com 300 lugares oficiais no teatro, o público da Noitada frequentemente ultrapassava o dobro, quando não o triplo, da lotação máxima do espaço. Seguindo o protocolo de um espetáculo, com duração de, em média, uma hora e meia, Coutinho admite uma certa dose de ansiedade causada pela aglomeração: “Eu pedia a Deus para acabar, pra não ter confusão; era muita gente junta, muita responsabilidade”, justifica. Sobre quem frequentava a plateia, ele destaca a forte presença da classe média, além do fenômeno dos gringos – “era um negócio impressionante”’, exclama. Entre os frequentadores, constam nomes como os de Mercedes Sosa, Gilberto Braga, Bethânia, Millôr Fernandes e Liza Minelli.
A apurada curadoria artística de Jorge Coutinho fez do elenco da Noitada um verdadeiro panteão do samba. Ao lado de Cartola, Clementina e Xangô, Nelson Cavaquinho completava o precioso quarteto que sustentava o elenco fixo da Noitada. As demais atrações se dividiam entre bambas, nomes emergentes e grandes revelações que o próprio espetáculo impulsionou. A cena do samba passou a se encontrar e se renovar lá. Ismael Silva, Zeca da Cuíca, Conjunto Nosso Samba, Dona Ivone Lara, Elza Soares e Candeia eram alguns dos medalhões da programação. Sobre Elza, Cély descreve:
– Eu sempre tive uma paixão enorme pela voz dela. Ela era muito efusiva no palco, o sambinha dela era muito sensual. Na hora que a mulher entrava no palco, era aquela coisa…ela crescia! Ela não tem uma estatura muito alta, mas, pô, a mulher ficava com dois metros! Eu comentava com os meus amigos baianos: “Rapaz, que coisa é essa? Como é que uma pessoa faz isso?!”. Que voz!
A trajetória de Candeia na Noitada deixou ao menos dois episódios dignos de nota. Quem conta um deles é Martinho da Vila em depoimento ao documentário Noitada de Samba: Foco de Resistência. Desde que sofrera um violento ataque a tiros, Candeia passou a se locomover em cadeira de rodas. A nova condição o deixou profundamente abalado e bastante resistente à aparições em público. Com muita insistência, Martinho convenceu Candeia a se apresentar em uma edição da Noitada. Para acolher o sambista, a produção apagou as luzes do teatro, posicionou o Candeia no meio do palco e, só então, tornou a acender as luzes. A claridão revelou o artista que fez o público arrepiar ao entoar: “De qualquer maneira, meu amor, eu canto / De qualquer maneira, meu encanto, eu vou sambar”, da composição “De qualquer maneira”.
A outra história tem como protagonista outra composição de Candeia: “O Mar Serenou”. Coutinho recorda: “O Opinião era o teste para saber se a música iria acontecer, entendeu? Se o público pegasse a música na segunda vez, era [sinal de que] a música já era um sucesso”, explica. Ele prossegue: “Candeia me pediu: ‘Jorge, mande o pessoal lá cantar a música ‘O Mar Serenou’. Aí eu pedi para o Conjunto Nosso Samba tocar [a canção]”. O termômetro deu certo e o desfecho provavelmente você conhece – “O Mar Serenou” sendo eternizado na voz de Clara Nunes e postulando entre as canções mais famosas da música brasileira.
Clara representa a ala fértil de artistas hoje consolidados e que começaram suas carreiras na Noitada de Samba. A roda das segundas-feiras formou nomes como Beth Carvalho, Monarco, Martinho da Vila e Leci Brandão. Em um dos pouquíssimos registros da Noitada de Samba disponíveis no YouTube, há uma valiosa apresentação de Clara ao lado de Nelson Cavaquinho no ano de 1978. A principal homenagem de Clara à Noitada do Opinião está em outro vídeo da artista ao lado do sambista Dotô (presente também no doc de 2010), em que a guerreira afirma:
– Tudo isso é o Teatro Opinião, esse teatro que consegue reunir os maiores compositores, os mais autênticos, aqueles compositores de verdade. Teatro Opinião em que tenho um carinho muito especial porque foi lá, praticamente, que eu comecei minha carreira profissional no Rio de Janeiro, conhecendo Coutinho e Bayer. Eles dão oportunidade a gente nova”.
A biografia Clara Nunes – Guerreira da Utopia (2007), de Vagner Fernandes, aponta a coordenação do famoso empresário Benil Santos como determinante para inserção de Clara junto à Noitada. Entretanto, é fato que ela se tornou assídua na programação, virando referência de samba dentro e fora dos palcos do espetáculo.
Há também a passagem de outros nomes importantíssimos da música brasileira de fora do RJ, como o paulista Adoniran Barbosa, os baianos Batatinha e Riachão, o paraibano Jackson do Pandeiro, o gaúcho Lupicínio Rodrigues, entre outros. Sobre Lupicínio, inclusive, Coutinho destaca com orgulho: “Ele nunca tinha vindo cantar no Rio. Quem o trouxe para cantar aqui foi a Noitada de Samba”. Todos esses atendiam ao requisito primordial da iniciativa: ser “música brasileira raiz”, como classifica o produtor.
Samba, semente de resistência
Desde o Show Opinião, o teatro era um espaço visado pela Ditadura Militar, visto como potencialmente subversivo. Entretanto, as repressões e ataques à Noitada foram mais “brandos” frente ao que a aparelhagem militar poderia ser capaz. Na memória de Coutinho, o que vem à tona são algumas tentativas de associação do espaço ao uso de drogas ilícitas, através de provas plantadas. Em uma ocasião, ele comenta ter sido avisado por uma colaboradora da Noitada sobre um pacote deixado por alguém embaixo de um dos bancos. Ao lado de Bayer, Coutinho percebeu que ali havia aproximadamente dois quilos de maconha, que foi escondida por ele e Bayer em uma lajota solta do teatro. Já Cély relata a prisão de um colaborador encarregado do recolhimento dos ingressos, por estar sem a posse de seus documentos no momento da abordagem de um militar, mas que foi contornado.
O sucesso da Noitada teria sido justamente o dispositivo de proteção mais efetivo contra a ação da repressão do regime, como ela observa: “Tenho pra mim que eles [militares] não iam porque o público era muito grande. Era muito lotado e a imprensa toda falava sobre isso, a Noitada foi um acontecimento! Eu acho que eles pensavam: ‘Se a gente for lá pra prender alguém, vai ser um inferno…’”.
Em 1984, a Noitada de Samba encerrou suas atividades. Com a expansão dos artistas do espetáculo, a incompatibilidade das agendas para a realização das edições começou a ser um empecilho frequente. Entretanto, o fator definitivo para o fim foi a venda do Teatro Opinião e seus novos caminhos. Cély conta que houve até mesmo uma mobilização do grupo da Noitada para a compra do Teatro:
– Na época, Coutinho queria que as pessoas se reunissem e o comprassem. Lembro de estarmos reunidos, eu, Bayer, Coutinho e Clara Nunes, que recém tinha comprado o teatro dela. Clara se propôs a ir à Caixa Federal conosco. As pessoas que frequentavam o teatro, como a Eliana Pittman, queriam fazer um grupo para comprá-lo. Mas João das Neves não se entusiasmou com a ideia.
O teatro foi vendido para o empresário Adamy Dantas em 1981. Durante a reforma do espaço, a Noitada até passou uma temporada no Teatro Teresa Rachel (no mesmo prédio), mas ele não prosperou como um espaço permanente. Após as obras, o Opinião se modernizou e teve seu nome alterado para Teatro de Arena e, depois, Café-Teatro Arena. Em 2006, conforme o referido texto de Gullar para a Folha de São Paulo, o teatro foi desfeito, dando lugar à sede do 5º Juizado Especial de Pequenas Causas do Rio de Janeiro.
Cély encara o ciclo do espetáculo por uma ótica terna e potente: “A Noitada começou na fase mais feroz depois do golpe de 64, com AI-5 e tudo mais, e termina quando tem a anistia, quando as pessoas [exiladas] começam a voltar. Na minha cabeça, acho que ela veio para preencher o momento tão difícil que o país estava passando”, reflete.
Não ousamos duvidar da qualidade acolhedora, revigorante e terapêutica que a Noitada significou para quem pôde frequentá-la – afinal, o que seriam dos tempos sombrios sem as utopias como rotas de fuga? Mas as Noitadas de Samba pertenciam à classe das utopias tangíveis, dessas que a arte consegue nos oferecer. Seu legado permeia o que é da ordem da resiliência e da transformação.
As contribuições dos 13 anos de programação são incalculáveis: a iniciativa elevou os bambas do samba das periferias e morros à condição de mestres aclamados e renovou o gênero brasileiro, fazendo germinar uma geração de compositores, músicos e cantores que hoje são seus medalhões. Em 1978, a gravadora EMI-Odeon chegou a lançar uma coletânea chamada Noitada de Samba, reunindo artistas que estavam no seu elenco, como Dona Ivone Lara e Paulinho da Viola, e sambistas de outras gravadoras, como Xangô da Mangueira, da Tapecar.
Vitrine da música popular brasileira, a Noitada fez do Opinião uma verdadeira agência para seus artistas – servindo de ponto referência profissional e escritório para músicos que sequer tinham acesso a telefones em suas casas na época. Através dos holofotes do espetáculo, o samba também começou a conquistar seu espaço no mercado fonográfico, com empresários apostando na gravação de discos de grandes atrações dali, além da promoção de turnês por todo o Brasil. A Noitada de Samba deu visibilidade à arte de berço periférico, de favela, de morro, e ao discurso político desses artistas.
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