Oswaldo Lenine Macedo Pimentel nasceu e cresceu em Recife, em uma casa rodeada por música. Na vitrola, no rádio e nas rodas de violão da família, o pernambucano estava sempre captando sonoridades com suas antenas: ouvia os eruditos Bach e Chopin e os populares Luiz Gonzaga, Ângela Maria e Jackson do Pandeiro com os pais. Com a irmã, se inteirava do pop internacional de Stevie Wonder, Beatles e Paul Simon.
Foi também nessa época que Lenine descobriu a chave do guarda-roupas onde a irmã escondia o violão e, na sua ausência, começou a aprender a tocar o instrumento. Já na adolescência, mesma época em que se encantou com a musicalidade do Clube da Esquina, conheceu o Led Zeppelin, banda que considera essencial para sua forma de tocar.
Desde os encontros escondidos com o violão da irmã, Lenine e a música não se separaram. Ainda no Recife, integrou as bandas Flor de Cactus e Nós e Voz, fez música para o teatro, participou de festivais e cursou Engenharia Química, faculdade que abandonou no último ano para se dedicar à vida artística com o aval do pai, que perguntou: “Por que demorou tanto?”.
Mas a química não saiu da vida de Lenine. A mistura de elementos é característica de toda a sua obra, seja nas sonoridades ou nas composições feitas em parceria. Ao longo da carreira, assinou canções junto de Bráulio Tavares, Paulo César Pinheiro e Paulinho Moska, entre outros.
Quando se mudou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 1980, também viveu em uma mistura heterogênea na chamada Casa 9, imóvel onde viveram também Ivan Santos, Alex Madureira e outros companheiros de geração, dividindo músicas e vivências.
Após gravar um compacto com a Flor de Cactus (1979) e participar do álbum Caruá (1980), de Zé da Flauta e Paulo Rafael, Lenine concorreu ao Festival MPB Shell 81 com a música “Prova de Fogo”, que não saiu vencedora mas foi lançada no LP da competição e em compacto, com “Princípio de Culpa” no lado B. Também em 1981, participou do álbum Pipas Ao Ar, de Elza Maria. Essas gravações se enquadram em um momento de pré-história da carreira do cantor, que teria como seu marco zero a gravação do disco Baque Solto (1983), com Lula Queiroga.
Maracatu Silêncio
O cantor e compositor Lula Queiroga já era amigo de Lenine dos tempos do Recife, quando se reuniram para gravar um disco conjunto. Concebido nos tempos da Casa 9, Baque Solto teve repercussão pequena, motivada, segundo Lenine, pela estruturação do mercado na época: “Não tinha muito nicho [para o disco] naquele momento, as coisas eram muito ‘guetizadas’. O samba tava na cozinha e às vezes vinha para a sala de estar, na sala estava a MPB, e o rock estava saindo na garagem. Tinha uma série de condições assim, e não havia muito diálogo. Eram ‘universos-ilhas’ ali. Eu acho que Baque Solto já tinha uma coisa que você não sabia se era rock, se era MPB, o que é que era aquilo”, contou na série Homo Brasilis.
Lenine não gravou outros discos nos anos 1980. Naquela década, atuou como compositor dos blocos carnavalescos cariocas Suvaco do Cristo e Simpatia é Quase Amor e, paralelamente, estudava o violão e desenvolvia novas composições que apareceriam em vários de seus próximos álbuns, os quais só seriam gravados nos anos 90.
Batuque de violão
Em 1993 viria o segundo disco do pernambucano, misturando seu violão percussivo com o batuque melódico de Marcos Suzano. Se em Baque Solto os arranjos eram cheios de instrumentos, como teclados e guitarras, em Olho de Peixe o segredo seria a síntese. Percussionista cujo trabalho passa pela obra de artistas como Gilberto Gil, Paulo Moura e Djavan, Suzano foi o parceiro perfeito para o amálgama apresentado no álbum, produzido por Denilson Campos. Nele, é possível ouvir os detalhes do toque de Lenine, com harmonias caprichadas e técnicas elaboradas, que chegam ao ouvinte com uma requintada simplicidade.
Ao longo de sua carreira, Lenine utilizou diversos modelos de violões acústicos e semiacústicos, de marcas como Taylor, N.Zaganin e Yamaha, que possibilitam timbres e características estéticas diferentes. Na mão esquerda, o músico usa técnicas que incrementam suingue e sonoridade percussiva única, como o stacatto, e, na mão direita, as “ghost notes” complementam a batida, além dos acordes invertidos, que deixam as notas dissonantes mais evidentes.
Sobre como desenvolveu sua forma de tocar violão, que une elementos tradicionais e modernos, Lenine explica: “Led Zeppelin, cara. Aqueles riffs poderosos do rock. Durante uma parte da minha vida, foi só rock, então isso faz parte da minha formação. Eu acho que também é evidente na maneira como eu toco, justamente assim, com aquela sujeira, com drive, que eu busco ao tocar. Então tem a ver com essa agressividade, largando a mão, usando o ruído a serviço da música. Tem essa atitude do groove que você pode surfar, sabe?”
Olho de Peixe ainda não apresentaria os sucessos radiofônicos que se tornaram comuns nos discos seguintes. Contudo, a parceria com Marcos Suzano foi muito bem recebida pela crítica, e lançou o cantor como um destaque e uma aposta para a então nova geração da música brasileira. Além disso, foi um álbum que se tornou referência para músicos que despontaram anos depois.
Um desses jovens é o guitarrista e produtor Gustavo Ruiz Chagas, que se impressionou ao descobrir o disco ao lado da irmã, a cantora Tulipa Ruiz. “Quando eu estava começando a aprender o violão, em 1993, aquele som era um pouco avançado pra mim. Uns três ou quatro anos depois, eu mergulhei nesse disco, aprendi a tocar todas as músicas em um nível neurótico. O que o Lenine achou ali em termos de síntese de linguagem, e o encontro com o Suzano, que estava em um uma pesquisa de adaptação de todas as frequências para a percussão, é de uma genialidade atemporal”, comenta.
Na discografia de Lenine, Olho de Peixe é sucedido por O Dia Em Que Faremos Contato (1997), álbum feito com a produção Chico Guedes. Se no disco antecessor a sonoridade é marcada pela mistura do violão com a percussão, neste a batida eletrônica, os ruídos e efeitos sonoros tomam conta dos arranjos.
Mixado no Real World Studios, na Inglaterra, O Dia em Que Faremos Contato alçou Lenine ao sucesso popular com o hit “Hoje Eu Quero Sair Só” e com a faixa-título. Com toque experimental, a produção da obra trouxe uma conclusão para Lenine: “Eu estabeleci naquele primeiro, depois de Olho de Peixe, que o disco era um laboratório”, comenta em entrevista ao canal Bis.
A coprodução dos trabalhos se tornou um padrão em sua carreira. Na Pressão (1999), disco seguinte, trouxe a parceria com Tom Capone, em álbum marcado pela presença de outros produtores, como Kassin e Berna Ceppas, e pelos hits “Jack Soul Brasileiro”, “Paciência” e “Relampiano”.
Foi durante a produção desse álbum que Lenine conheceu Jr Tostoi, guitarrista que estava gravando com sua banda, Vulgue Tostoi, no estúdio de Tom Capone. Jr Tostoi integrou o time de produtores de Na Pressão e, em seguida, se tornou músico da banda do cantor, além de produzir vários trabalhos que vieram a seguir.
Sobre trabalhar com Lenine, Tostoi comenta: “Ele atinge muita gente com uma forma muito própria de fazer música. Ele tem canções em compassos não convencionais no pop que tocam muito no rádio. Sou muito fã do Lenine e fico muito honrado, porque ele sempre me deixou à vontade na hora de criar”.
Cantora e violonista da nova geração da MPB, a baiana Josyara conta que Na Pressão foi o álbum de Lenine que mais a influenciou em sua carreira: “É o disco que eu mais ouço, pela conversa boa com as batidas eletrônicas, essa forma dele timbrar o violão de formas diferentes. Eu acabo ouvindo muito para pescar ideias. Lenine é um pensador, ele tem músicas que têm uma reflexão filosófica, que retratam um tempo e conseguem também ser atemporais, além de um lado romântico que eu gosto muito. Uma das coisas que me fascinam nele é esse olhar percussivo para o violão, que eu também procuro. Meu desejo é que um dia nossos violões se encontrem para batucar”.
Novos Processos
Lenine considera que Falange Canibal (2002) encerra uma trilogia iniciada no disco de 1997. Com título de um evento que o artista frequentava na Lapa, no Rio de Janeiro, a obra trouxe para o cantor o primeiro de seus seis Grammys Latinos, na categoria Melhor Álbum Pop Contemporâneo Brasileiro. Nesse período, o artista estava a todo vapor, com turnês internacionais na Europa, Ásia e América Latina e seus álbuns sendo lançados em diversos países. Os dois trabalhos seguintes, os ao vivos In Cité (2004) e Acústico MTV (2006), receberam o mesmo prêmio.
Em 2007 Lenine foi convidado para compor a trilha sonora de um espetáculo do Grupo Corpo. Com isso, ele inaugurou uma nova forma de fazer música em sua inventiva carreira, o que o levou a criar as canções de Breu a partir de um conceito específico, fórmula que também norteou a segunda trilha que fez para o grupo, Triz (2013), e seus álbuns seguintes.
Labiata (2008) foi o primeiro disco de carreira em que Lenine entrou no estúdio sem repertório, com título inspirado em uma espécie de orquídea — uma de suas paixões. Também é um álbum que levou sua banda dos palcos para o estúdio, com o trio formado por Pantico Rocha (bateria), Guila (baixo) e Jr Tostoi (guitarra).
Em seguida, o cantor partiu para uma ideia completamente diferente: gravar um álbum sem bateria ou percussão, tendo os sons do cotidiano como parte dos arranjos. Trabalhando com a espacialidade e com os efeitos da quadrifonia, Lenine criou, sob produção de seu filho Bruno Giorgi e de Jr Tostoi, um trabalho de clima cinematográfico, com show em novo formato, para se adaptar à estética do disco.
Nos anos seguintes, Lenine se reconecta com suas raízes pernambucanas em Carbono (2015), lança a gravação de um concerto com a Martin Fondse Orchestra (The Bridge, 2016) e, em 2018, conquista seu sexto Grammy, com Em Trânsito, dessa vez, na categoria Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa, mostrando a versatilidade de sua obra.
Lenine chega aos 65 anos como um capítulo singular da música brasileira, com excelência reconhecida por todo o mundo e por quem o acompanha de perto: ”Pra mim, um músico é excepcional quando você olha pra ele e parece que é fácil tocar da forma que ele está fazendo. O Lenine tem isso. Você olha pra ele no palco e ele tá dançando, rindo, enquanto faz aquelas harmonias complicadas, cantando pra caralho. Ele tem uma coisa muito João Bosco, mas o João Bosco toca sentado”, diz Jr Tostoi.
LEIA MAIS