“Se Você Pensa”: a canção de Roberto e Erasmo em 3 vozes femininas

14/10/2024

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Livia Nery

Por: Livia Nery

Fotos: Arquivo Nacional e Arquivo Público do Estado de SP/Reprodução

14/10/2024

Dentre os muitos sucessos da parceria entre Roberto e Erasmo Carlos, “Se Você Pensa” é uma das mais lembradas. Convidamos a cantora, produtora musical e pesquisadora baiana Lívia Nery para escolher três releituras da música que lhe emocionem. As versões de Elis Regina, Nara Leão e Eliana Pittman, cada uma ao seu modo, deram vida à canção, acrescentando novas camadas de sentido com suas vozes femininas e seus arranjos extremamente inventivos.

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Eliana Pittman

“Se Você Pensa” é a segunda faixa do Lado B de Estrela é Lua Nova (1969), quarto LP solo da cantora e atriz Eliana Pittman. A releitura saiu um ano depois de um dos autores, o próprio Roberto Carlos, tê-la gravado no seu disco O Inimitável (1968). Com uma carreira já iniciada internacionalmente em dueto com o seu padrasto, Booker Pittman, Eliana se volta ao Brasil com desejo de conquistar este que é o seu país, se adaptando ao formato de carreira solo após a doença de seu padrasto, que morreu aos 60 anos de câncer na laringe. 

A versão — bem como o LP que a traz — se situa antes de Eliana ser identificada como “Rainha do Carimbó” e após a onda mais alta da bossa nova, que ela também surfou como estrela de grande talento. A canção começa num clima jazz ballad e, depois de uma virada, o andamento se acelera e surgem arranjos sofisticados para o samba jazz, com características da então jovem MPB. O arranjador possivelmente é o Maestro Erlon Chaves, o “Maestro do Veneno”, que assinou arranjos para Wilson Simonal, Elis Regina, dentre outros artistas. Erlon é citado em texto de Eliana, estampado na contracapa do álbum, como alguém “que muito auxiliou na parte musical” do LP. Os músicos que gravaram não estão identificados. 

Eliana não se identificava com nenhum gênero em particular, sempre foi versátil, interpretava e misturava muito bem uma vasta gama de estilos. A interpretação vai se tornando surpreendente à medida que ela solta a voz e leva para o estúdio o vigor de suas apresentações ao vivo, numa possível influência da psicodelia já apontada na música brasileira daqueles anos. Na contracapa do disco, Eliana diz: “Sempre tenho muito medo quando entro em um estúdio de gravação. Não tenho medo de cantar para um imenso público (…) Mas chegando a um estúdio… Não sei, me transformo!”, para em seguida agradecer ao “carinho, dedicação e perseverança do amigo e produtor João Araújo, sem o qual não teria feito este disco.” 

Para alguém que confessou desespero ao entrar em estúdio, Eliana parece estar muito à vontade e, sobretudo nesta faixa, entrega a atitude que os versos pedem (“Se você pensa que vai fazer de mim/ O que faz com todo mundo que te ama/ Acho bom saber que pra ficar comigo/ Vai ter que mudar”). Tudo isso nos emociona ainda mais saindo da voz uma mulher como Eliana, lenda brasileira fora daqui, estrela viva da música popular brasileira que a indústria musical do país não valorizou à sua altura.

Elis Regina

Elis Regina: "Se Você Pensa": a canção de Roberto e Erasmo em 3 versões femininas / Arquivo Nacional

“Se Você Pensa” fecha o quarto disco ao vivo de Elis Regina, gravado no Teatro da Praia (RJ) durante o Show Elis/Miele (1970). Ela já havia gravado a música no disco anterior — Elis Regina In London (1969) — e acabou entrando também para o repertório deste espetáculo em que Miele e Elis dividiam o palco, ele como um host e humorista, ela como cantora e entertainer. 

Miele e Ronaldo Bôscoli tiveram grande participação neste momento de carreira da cantora, como produtores musicais, diretores artísticos, tendo sido Bôscoli também seu companheiro. Neste projeto, ele assina a produção e direção musical. Esta foi a primeira experiência de Elis, que já fazia televisão e shows, em teatro e, como os jornais anunciaram no dia seguinte à estreia, foi primeiro “o salto” de sua carreira. 

A banda que toca a faixa, assim como todo o disco, é o Conjunto Elis 5: Roberto Menescal (guitarra), Wilson das Neves (bateria), José Roberto Bertrami (piano), Hermes (percussão) e Jurandir Meirelles (contrabaixo). Todos eles figuravam entre os músicas excepcionais dos conjuntos de bossa e samba-jazz da época. 

A interpretação da obra de Roberto e Erasmo começa com Miele “mielofonando”, com piadas e comentários possivelmente pouco sedutores para os dias de hoje. Sua participação funciona como uma costura, como ele mesmo explicou em um de seus livros: “…era para ser apenas uma performance dela, mas Elis pensou em trocar de roupa entre alguns números, e Ronaldo sugeriu que eu entrasse no palco e contasse uma história qualquer. (…) a Elis se divertiu muito, sugeriu outras participações minhas, e acabei quase dividindo o show com ela, o que eu considerava um absurdo, em face de uma estrela daquela grandeza.” 

Como única mulher ali, descobrindo a novidade do teatro e de performar como que num musical, Elis brilha e entrega uma interpretação impecável, com andamento acelerado em relação à original, num instrumental brasileiro soando a brisa da então nova MPB. Ela finaliza dizendo: “Que minha música tenha sido escutada com o mesmo carinho com que ela foi feita, e que não tenha perdido o fôlego nesse longo mergulho que foi chegar até vocês o meu som, de que me orgulho a beça”, logo antes de apresentar sua banda. 

Ali, ouvimos uma Elis em momento de frescor e de novas descobertas. Antes de a artista amargar  dissabores que a indústria musical predominantemente masculina lhe reservaria mais adiante.

Nara Leão

“Se Você Pensa” está no disco …E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno (1978), 17º álbum da discografia de Nara Leão. Nesse disco, ela registrou somente canções de Roberto e Erasmo. Por esse motivo, foi um disco criticado pela turma da MPB dita nacionalista a qual ela também se associou. Mas a escolha artística revela o ímpeto decidido e seguro de Nara no que se referia às escolhas de sua carreira.

O álbum é composto de clássicos destes compositores populares, sucessos que já passaram por múltiplas interpretações.  Porém, as canções são interpretadas em leituras muito singulares, inovadas pela produção musical de Roberto Menescal e os arranjos dele com Maurício Lana Carrilho. Também chama atenção o grande elenco de músicos que participam do disco, incluindo Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Marku Ribas, Raphael Rabello, Djalma Correa, Antonio Adolfo, Luizão Maia, Wilson das Neves, entre tantos. 

“Na escolha do repertório, resolvi privilegiar o que me pareceu mais forte, positivo, o que leva para a frente procurando uma brecha, uma saída. A música de Roberto-Erasmo passa pela emoção, fala das coisas ‘sem importância’ do quotidiano, de forma clara, simples e direta. Não constrói uma visão do mundo nem define as coisas como devem ser. Não interpreta, relata experiências. (…) A música de Roberto-Erasmo me fez redescobrir a música brasileira”, diz Nara na contracapa do disco. Assim é “Se Você Pensa”, um canto de retomada de si mesmo numa lírica sem arrodeios.

A brasilidade dos arranjos com sotaque funk marca esta versão, que se inicia com percussão e baixo prenunciando o groove, seguidos de uma guitarra wah-wah e piano elétrico da melhor tradição de piano brasileiro. Já perto do fim, o solo de sintetizador (os créditos falam do maestro Antonio Adolfo ou Jotinha) fecha essa versão apontando um futuro que bebe do passado, abraça a simplicidade e força do cancioneiro brasileiro.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 147 da revista NOIZE, lançada com o vinil Morais Moreira (1975), em março de 2024.

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14/10/2024

Livia Nery

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