Um mergulho no caderno de desenhos de Torquato Neto

09/01/2025

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Por: Peu Araújo

Fotos: Torquato Neto

09/01/2025

As linhas abaixo são de doces descobertas. Dessas coincidências da vida que nos trazem esperança, mesmo em tempos de tão poucos sonhos. A edição da NOIZE que está em suas mãos tem como objetivo trazer o universo do álbum Nenhuma Dor, de Gal Costa. Uma celebração dos seus 75 anos e uma ode à música brasileira em várias esferas. Gal é essa mulher incrível e de um talento gigantesco que escolheu, a dedo, canções que fizeram parte de sua trajetória em duetos tão belos quanto improváveis.

Para aglutinar essas dez canções em um álbum, ela e sua equipe escolheram o título Nenhuma Dor, frase com um significado quase impossível em uma pandemia, mas também uma música, um poema e um acalanto escrito por Torquato Neto em 30 de julho de 1970.

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O poeta, letrista e jornalista de Teresina, capital do Piauí, Torquato Pereira de Araújo Neto teve uma breve, mas rica, passagem por aqui. Nasceu sob a regência do signo de escorpião no dia 9 de novembro de 1944 e pôs fim à sua vida um dia após completar 28 anos. Em sua curta e grandiosa trajetória, escreveu dezenas de canções: muitas delas com Gilberto Gil, como “Geleia Geral”, “Louvação”, “Domingou”, entre muitas outras.

Com Jards Macalé compôs “Let’s Play That”, “Dente por Dente” e “Destino”. Com Luiz Melodia, criou “Que Tal” e “Começar Pelo Recomeço”. Com Caetano Veloso também fez muitas, entre elas “Juliana”, “Mamãe Coragem” e a faixa que batiza este álbum de Gal Costa, “Nenhuma Dor”. Fez parcerias também com João Bosco, Edu Lobo, Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, entre muitos outros. 

Torquato Neto foi muitos. Na capa do disco Tropicália ou Panis Et Circences ele está, coincidentemente, sentado ao lado direito de Gal Costa de traje social e uma boina na cabeça. No cinema, atuou em três filmes, entre eles Terror da Vermelha, de 1972, em que é também diretor. Apesar de ser lembrado principalmente como poeta, seus livros foram todos publicados após sua morte. 

Na busca pelas pautas desta edição, a equipe de redação descobriu desenhos de Torquato Neto. Estudos imagéticos curiosos e ricos de significados feitos, em sua maioria, com o auxílio pouco luxuoso de uma caneta esferográfica. Olhar para os desenhos do poeta é como se você entendesse um pouco o caos que ele trazia em poemas e letras de música, é quase uma conversa com o piauiense.  Veja abaixo:

Em meio a dezenas de desenhos, um papel comprido com rostos riscados e uma revoltada assinatura se destaca. Há também algumas palavras que figuram ali como ondas do mar, elas fazem curva, não seguem a obviedade tola de uma linha reta, flutuam na página com uma poesia. É a letra, escrita à mão, datada e assinada, de “Nenhuma Dor”, a canção que batiza o disco que você recebeu. É a coincidência mais doce que poderíamos receber neste exemplar. 

Minha namora_
                     da
tem segredos
tem
nos olhos mil

brinquedos
de magoar o meu 
      amor

Além da letra da canção, há outros 11 desenhos e uma frase batida à máquina de escrever no meio da página, em que se lê: “paisagem com ôlho”. Há também um universo pouco visitado da obra de Torquato Neto, uma novidade, inclusive, para sua família. Seu filho, Thiago Nunes, que tinha apenas dois anos e nove meses quando o pai se despediu, recebeu com surpresa os “rabiscos”. “Eu conhecia três desenhos, o resto eu nunca tinha visto”. E dá seu veredito. “Achei legal pra caramba, parecem estudos de pintor mesmo, curti muito o que acho que era um casal, tem uma linha só. Quero imprimir uns maiores para colocar na parede aqui de casa”.

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Aos 51 anos, Thiago, que é piloto de avião, fala das poucas memórias e lembranças sobre o pai. “Eu tenho um caminhãozinho de madeira, que foi o último presente que ele me deu”. E conta como vê Torquato: “Eu não consigo ver meu pai como poeta maldito, é só meu pai mesmo”. O filho ainda dá uma sugestão de quando esses desenhos devem ter sido feitos: “Acho que ele fez esses desenhos aí quando ele se internou lá em Teresina.”

Thiago fala com algum pesar sobre não saber tanto assim da vida de Torquato. “Quando a produção do longa-metragem Torquato Neto: Todas as Horas do fim descobriu uns áudios guardados e fez um evento para mostrar a entrevista, eu nunca tinha ouvido a voz do meu pai. Era um monte de gente e eu não conhecia ninguém e, de todo mundo que estava ali, o que menos sabia dele era eu”.

Mas fala sobre a partida precoce do pai com carinho: “O cara morreu com 28 anos escrevendo esses negócios, imagina se ele tivesse ficado vivo mais tempo? Aí eu penso também que, para ele chegar com 28 anos escrevendo esse tipo de coisa ele, não aguentaria muito tempo mesmo. Eu acho que é o preço mesmo da genialidade absoluta, às vezes é ir cedo mesmo”.

Quem também exalta a genialidade de Torquato Neto é o primo George Mendes, responsável pelo acervo físico e digital do poeta – que pode ser visto no site oficial dedicado ao artista. “A gente tem que respeitar que um artista que foi embora com 28 anos, que construiu uma obra forte, contundente em dez anos, também não teve tempo de enveredar por todos os caminhos que ele queria. Embora ele próprio colocando fim à vida possa ter chegado a esse momento em que falou: ‘Tá feito, tá concluso, não tenho mais o que dizer’”.

O primo explica um pouco o processo criativo de Torquato Neto e o caminho que o levou aos desenhos. “Ele trabalhava com cadernos de criação, então ele pensava e rabiscava algumas coisas. Umas ele desenvolvia, outras não, mas encontramos, para nossa surpresa, vários desenhos feitos por ele sem nenhum acabamento, apenas com a mão livre fazendo algo que poderia ser um embrião de uma ideia em desenvolvimento”.

Esses desenhos que voavam livres na folha de papel foram compilados em uma área do site e estão preservados no acervo físico do poeta. Eles são, em suma, um diálogo com a intensa obra de Torquato Neto e surgem como se, mesmo depois de 49 anos de sua morte, o artista quisesse nos contar uma novidade, nos dizer que era ainda muito mais do que imaginávamos. 

Não há a intenção neste texto de interpretar ou de classificar a expressão artística dos desenhos de Torquato Neto, não há nenhuma intenção a não ser celebrar a delícia deste encontro de sua caneta esferográfica que rabiscava pequenas loucuras nos cadernos com os dias de hoje. Não há nenhuma intenção a não ser agradecer pela coincidência e compartilhar aqui com vocês isso que o poeta, jornalista e também desenhista nos disse lá atrás. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 110 da revista NOIZE, lançada com o vinil Nenhuma Dor, de Gal Gosta, em 2021.

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