Disco à brasileira: como Tim Maia ajudou na popularização do estilo musical no país

28/09/2023

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Por: Revista NOIZE

Fotos: Maurício Valladares e Arquivo Nacional/ Reprodução

28/09/2023

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 114 da revista NOIZE impressa, lançada com o vinil de Tim Maia Disco Club (1978), de Tim Maia, em 2021.

Entrevista: Amanda Cavalcanti e Ariel Fagundes

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Em 1975, um pouco depois do lançamento de seu disco de estreia Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda, Hyldon resolveu passar alguns dias em Nova York. A escolha da cidade foi feita com base em onde o músico poderia ver shows dos artistas que mais o inspiravam: The Temptations, Al Green, Diana Ross, The Supremes e por aí vai. Durante a viagem, Hyldon viu um show de Marvin Gaye apresentando What’s Going On?, foi ao Harlem e ao teatro Apollo, onde James Brown gravou seu clássico Live at the Apollo em 1968, uma casa famosa por receber grandes artistas negros. 

Essa era a época em que a música negra, depois de longas décadas construindo a base para os gêneros que tomaram os Estados Unidos, começava finalmente a tomar a dianteira e se tornar, muito merecidamente, o centro das atenções. O nascimento das discotecas – uma cultura predominantemente vinda da Europa, mas que começava a chamar a atenção da imprensa americana – em cidades como Nova York, Los Angeles e Atlanta possibilitaram que ritmos dançantes como o R&B, o soul, o funk e o go-go, e artistas como Smokey Robinson, Curtis Mayfield e Isaac Hayes, se tornassem cada vez mais populares. 

Tudo isso preparou o terreno para a febre que tomaria os Estados Unidos durante a década de 1970: a cultura e a música disco. Já era possível encontrar alguns sinais do que viria musicalmente nos gigantes dos anos 1960, como os artistas da Motown. Em 1971, numa matéria para a Rolling Stone americana, o crítico Jon Landau disse que o som da gravadora se caracterizava por um “padrão implacável de quatro batidas”, o “uso de backing vocals inspirado pelo gospel” e um “uso frequente e sofisticado de cordas e sopros” – todas fortes características da disco music que chegaria anos depois. 

Muitos jornalistas e críticos apontam que um dos inícios da disco music teriam sido as festas que o DJ David Mancuso realizava em sua casa em Nova York, também conhecida como The Loft. As festas de Mancuso eram abertas a todas as raças e orientações sexuais numa época em que a segregação e o preconceito afetavam a população negra e a população queer fortemente na noite da cidade. O ponto onde todos convergiam no The Loft era a música, e Mancuso exigia que ela fosse comovente, rítmica e que transmitisse palavras de esperança, redenção e orgulho. 

Música negra, discotecas, cultura hippie e cultura LGBT: estava dado o start que formaria a disco music. Neste ínterim, surgiram gravadoras nova-iorquinas como a Salsoul Records, a West End Records e a Prelude Records, que lançaram vários dos 12″ que dominaram as pistas de Manhattan. Aos meados da década, esses hits já se multiplicavam: Carl Douglas fez com que sua “Kung Fu Fighting” tocasse no país inteiro em 1974, e KC And The Sunshine Band lançaram “That’s the Way (I Like It)” em 1975.

Em 1978, o ápice da febre disco foi marcada pelo lançamento dos três singles mais icônicos e representativos do gênero: “September”, do Earth, Wind & Fire, “Le Freak”, do Chic, e “I Will Survive”, de Gloria Gaynor. E foi nesse ano que Tim Maia lançou sua própria obra disco, Tim Maia Disco Club

A invasão das discotecas

Enquanto Hyldon fazia sua viagem a Nova York, Tim Maia lançava o primeiro volume de Racional, encantado com a doutrina de sua nova religião. Não demorou para que o cantor se desiludisse, e em 1976 ele estava “sem disco, sem shows e sem um puto no bolso”, como conta o biógrafo Nelson Motta no livro Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia. Mas logo Tim colocou sua vida e sua banda nos trilhos novamente, conseguindo um contrato com a Polygram para lançar os dois discos que marcaram sua volta ao mundo profano, ambos autointitulados, de 1976 e 1977. 

Para Motta, nesse momento a cultura Racional deu lugar ao orgulho negro como tema central da obra de Tim. 1976 também foi o ano em que a Banda Black Rio lançava sua obra-prima Maria Fumaça e Jorge Ben Jor dava ao mundo o clássico África Brasil – foi a explosão do que a imprensa veio a chamar de Movimento Black Rio, o movimento de contracultura que vinha se construindo no Rio de Janeiro desde 1969 e que colocava a música negra ao centro de anseios políticos, culturais e intelectuais. 

Na discografia de Tim, esse momento ficou marcado pela canção “Rodésia”, que falava da guerra civil sangrenta pela independência protagonizada pela população do país que depois ficaria conhecido como Zimbábue: “Sei que és do soul / Não és de matar / Mas não vais deixar pra lá.”

Ao mesmo tempo, Hyldon voltava ao Brasil encantado com o que viu em Nova York e, no disco Deus, A Natureza e a Música, lança a canção “Estrada Errada”, considerada a primeira faixa disco brasileira. Mas Hyldon não ficaria muito tempo sozinho nessa estrada: a discoteca chegava ao Brasil com força total com a abertura de duas no Rio de Janeiro, a Frenetic Dancing Days Discotheque e a New York City Discotheque, e uma em São Paulo, a Papagaio Disco Club.  

Artistas como As Frenéticas e Lady Zu começavam a fazer barulho com a disco music, impulsionadas ainda mais pela estreia do filme Os Embalos de Sábado à Noite no Brasil, estrelado por John Travolta no inesquecível papel de Tony Manero, e a novela Global Dancin’ Days. Mas Tim não estava, ao menos ainda, tão interessado pela febre disco

“A discoteca é uma coisa muito primitiva, é a coisa do bumbo reto – bum-bum-bum-bum – é tribal o negócio. E a música negra foi virando toda pra esse lado aí. Foi uma coqueluche danada”, fala Hyldon à Noize. “Quando eu vim de Nova York, trouxe um disco do Earth, Wind and Fire e mostrei pro Tim e o Tim: ‘Ah, não. Eu não gosto desses caras, não. Eu gosto é do Ohio Players‘, aí ia lá e botava o Ohio Players pra tocar.” Ohio Players era um grupo de funk e soul de raiz, autores do hit “Love Rollercoaster”, que mais tarde foi regravado pelo Red Hot Chilli Peppers

Renato Piau, que tocou guitarra na banda de Tim na mesma época, também diz que o cantor não era muito chegado à disco. Ele conta que a Vitória Régia frequentava muito a filial da Papagaio Disco Club no Rio, mas que Tim curtia mais pela festa e pela qualidade sonora do local. “Enquanto ritmo, o Tim sempre achou a música brasileira a melhor do mundo, ele sempre disse isso. Nessa época, a gente ia mais pra ver o que estava vindo da América, mas não era uma coisa que enchesse tanto os olhos dele”, diz. 

Já Nelson Motta comenta em Vale Tudo que a disco era, sim, do gosto de Tim, e que ele se sentia “muito à vontade ao lado de Kool & The Gang e do Chic”. 

Seja como for, essa era a época em que o cantor saía da Som Livre e era contratado pela recém-fundada Warner Brasil de André Midani. Com a possibilidade de fazer um álbum do jeito que quisesse e um gosto pela festa, Hyldon diz que veio de Tim a ideia de fazer seu próprio disco club. “O Tim tinha um lado muito festeiro. Era como ele falava, ‘esquenta sovaco’ e ‘mela cueca’. ‘Mela cueca’ é música lenta. ‘Esquenta sovaco’ é aquelas que você dança e fica aquela pizza embaixo do braço”, fala. “O show pra ele era uma festa. E é por isso que ele resolveu fazer o Tim Maia Disco Club dele. Como se fosse uma festa disco.”

‘Disco’ à brasileira

Todo disco tem seu carro-chefe, a canção que dá o tom a todas as outras que virão depois. No caso de Tim Maia Disco Club, essa canção foi “A fim de Voltar”, faixa que Tim compôs em parceria com Hyldon e a que tem a vibe mais disco em todo o álbum. 

Mesmo sendo a faixa que deu o tom, “A fim de Voltar” foi a última composta. Hyldon conta que Tim assinou o contrato com a Warner e foi ao estúdio gravar, mas ainda não tinha todas as músicas prontas. “A gente tinha um lugar lá em que a gente almoçava, era mais uma pensão do que um restaurante, mas com uma comida muito boa. A gente dava um intervalo, ia almoçar e, depois, voltava e fazia sessão de novo. Aí o Tim virou pra mim e falou assim: ‘Pô, Hyldon, tá faltando uma música. Você faz o seguinte, faz uma música aí pra gente gravar, quando eu voltar do almoço, eu trago teu almoço’.

“Como ele estava nessa ideia do Tim Maia Disco Club, pensei: ‘Eu vou fazer uma discoteca, pô’. Aí compus o ‘A fim de Voltar’. Quando ele voltou, falou: ‘E aí, conseguiu?’. ‘Consegui’. Mostrei pra ele e, na segunda vez que eu fui tocar, ele já estava fazendo a letra.”

Hyldon escreveu a melodia no piano e Tim, no começo, gravou só a primeira parte do refrão (“A fim de voltar…”) e foi terminar de fazer a letra em casa. Mas acabou que o tom era baixo demais para que ele conseguisse alcançar a melodia da segunda parte do refrão, e a solução foi chamar um trio de cantoras para finalizar (com o “mas eu tenho um certo receio”). Os backing vocals, juntamente com o arranjo de cordas feito pelo maestro Lincoln Olivetti, acabou dando à faixa um toque ainda mais disco

A faixa de abertura é seguida pelos dois maiores sucessos do disco: “Acenda o Farol”, também uma faixa legitimamente disco, e a gigante “Sossego”, mais puxada para o funk e soul pelos quais Tim Maia já era conhecido tão bem. “Eu já fiz muitas gravações, mas uma das guitarras que eu mais gosto é a guitarrinha base de ‘Sossego’. A gente até dobrou, já tinha essa onda de mais canais, e nós dobramos. Você vê, essa levada da guitarra do ‘Sossego’ é uma embolada, quase. Mesmo fazendo uma música ‘americanizada’, tinha os elementos brasileiros ali”, fala Hyldon. 

As contribuições de Hyldon a Tim Maia Disco Club são inestimáveis, mas ele não foi o único grande músico a participar do disco. Além do de “A fim de Voltar”, Lincoln Olivetti é o responsável por grande partes dos arranjos do álbum, e Disco Club foi o primeiro de muitos discos em que Tim colaborou com o maestro e seu fiel escudeiro, Robson Jorge. Os baixos ficam por conta de Jamil Joanes, na época baixista da Banda Black Rio, e o baterista é Paulinho Braga, que já tinha tocado com Elis Regina, Milton Nascimento e Tom Jobim. O solo de guitarra da faixa final, “Jhony”, ficou por conta do recém-ex-Novos Baianos Pepeu Gomes. O restante das guitarras se dividem entre Hyldon e a última adição à banda Vitória Régia na época, Renato Piau. 

Piau entrou no grupo para substituir Paulinho Guitarra, que trabalhava com Tim desde 1971 e cuja relação com o cantor estava se desgastando já há alguns anos antes de sua saída. Após ter ido tocar com Cassiano, Piau e Tim se encontraram por acaso num botequim, onde Tim ofereceu um PF ao guitarrista. “Quando acabei de comer, ele perguntou: ‘Piau, vai fazer o que meu irmão?’. ‘Tô de bobeira aí, Tim’. ‘Então, seguinte, vamos lá pra Seroma, tu vai tocar comigo. Tô sem guitarrista, tu vai ser o guitarrista’. Pô, quase que eu caio pra trás, não acreditei.”

Fã de Tim desde que tocava com a banda Brasinhas em sua terra natal, Teresina, Piau conta que, quando se mudou para o Rio, sonhava em ter a oportunidade de ficar próximo do ídolo. Naquele dia, Tim o levou para a sede de sua gravadora independente, Seroma, e passou todas as músicas de seu repertório para Piau na guitarra. “Tocou as músicas todas, foi tocando e cantando pra eu aprender. E eu olhando, quietinho, vendo ele tocar”, fala o guitarrista. 

A adição à banda foi um sucesso desde o primeiro show, em 1977, quando Tim, Piau e outros membros da Vitória Régia dividiram um chá de cogumelo antes de uma apresentação no Carioca Esporte Clube, no Jardim Botânico. Mas o grande momento de Piau com Tim veio apenas durante as gravações de Tim Maia Disco Club, enquanto o cantor juntava as canções que fariam parte do disco. “Ele veio pra mim: ‘Não tem uma musiquinha pro disco, não, Piau? Toca uma musiquinha tua aí’.”

“Aí eu me lembrei do ‘Pais e Filhos’, que era um trabalho meu recente. Peguei e cantei pra ele. Minha voz quase não saía, mas cantei. E ele ficou calado, ouvindo, eu vi que ele prestou atenção. Ouviu a canção todinha, quando acabou ele ficou calado uns minutos, sei lá, pensando se ia gravar ou não, e falou: ‘Piau, canta de novo essa música’. Aí eu pensei: ‘Ih, o cara gostou’. (risos) Aí eu já inflei, já cantei mais alto, com mais destreza, mais empolgado. E ele: ‘Pô, essa música é legal, vou gravar'”, conta o guitarrista. 

A canção, uma letra comovente num tom de carta confessional, de um pai para um filho, foi feita por Piau em parceria com Arnaud Rodrigues, com quem o músico havia formado o grupo humorístico Baiano e os Novos Caetanos no começo da década. Mas quem ouve a bonita canção não imagina a briga que aconteceu nos bastidores de sua gravação entre Tim e o produtor uruguaio Miguel Cidras, que havia sido chamado para bolar os arranjos da faixa.

“O microfone estava aberto, na gravação do ‘Pais e Filhos’, e o Tim não gostou muito do arranjo de cordas e reclamou com o Guti [Carvalho], que foi o produtor desse disco. Disse que não era pra ter chamado o Miguel Cidras. Eu sei que o Miguel Cidras ouviu a conversa, bicho, e entrou no aquário: ‘Hijo de puta! Te mato! Te fuedo!’. [O Tim] levou uma gravata do Miguel Cidras, aí foi aquela confusão. Nesse dia, a gravação dançou, mas a música foi das que mais tocaram do disco”, relembra Piau, com bom humor. 

“Pais e Filhos” é uma de algumas baladas que formam o lado B de Disco Club – junto com “Murmúrio”, “Juras” e a belíssima “Se Eu Lembro Faz Doer”. Já o lado A, das porradas disco, além de “A Fim de Voltar”, “Sossego” e “Acenda o Farol”, ainda conta com uma espécie de auto-homenagem instrumental, a dançante “Vitória Régia – estou contigo e não abro”. 

Todos os músicos que acompanharam Tim em estúdio chegaram a acompanhá-lo ao vivo para as apresentações do álbum. Piau conta que as guitarras se revezavam entre ele e Hyldon e ele e Robson Jorge. “O Robson Jorge era o melhor músico brasileiro, eu gostava quando ele ia pro teclado e eu tocava guitarra sozinho, mas de vez em quando ele tocava guitarra comigo também porque já tinha dois pianistas. O Tim não tinha esse negócio, se tivesse três pianistas, tocavam os três! A banda dele era um condomínio. Tinha que tocar direito, conhecer o repertório, mas às vezes eram duas guitarras, dois teclados e seis sopros. Uma banda enorme. E era aquela usina sonora da banda Vitória Régia”, fala Piau. A densidade proporcionada pela quantidade de músicos ao vivo ajudava a banda a chegar ainda mais perto dos timbres complexos da música disco, sempre repleta de sopros e cordas. 

Sucesso brilhante

Tim Maia Disco Club foi um grande sucesso e garantiu que Tim lotasse ginásios ao redor do país com o groove inegável de suas novas faixas. Como conta Nelson Motta em Vale Tudo, “não havia festinha, boate, bailão ou discoteca em que a pista não estourasse quando Tim pedia sossego ou dizia que estava a fim de voltar ou mandava, se o pneu furasse, acender o farol.” 

“Sossego”, principalmente, marcou a época por ser uma das músicas mais tocadas no Brasil na época do lançamento do disco. A faixa ainda foi trilha da novela da Globo Pecado Rasgado e do filme soft-pornochanchada Nos Embalos de Ipanema, dirigido e produzido pelo manauara Antônio Calmon

Para Hyldon, o lançamento de Tim Maia Disco Club marcou o começo do que foi um ótimo período na carreira do cantor. “Ele era assim, ele tinha umas fases. Então, tinha uma fase em que ele se recolhia, tinha uma fase em que ele ficava doidão, depois ele ia correr atrás do dinheiro, aí gravava e fazia sucesso, aí de repente gravava um ‘Me Dê Motivo’, gravava uma música com a Gal, ‘Um Dia de Domingo’… Ele estava sempre assim, em altos e baixos com o sucesso. Mas essa época foi muito boa pra ele, essa sequência de discos”, fala. 

Tanto foi que, com o passar dos anos, Tim Maia Disco Club foi relançado pela Warner duas vezes: a primeira em 1981, com outra capa e o título O Melhor de Tim Maia, como se fosse uma coletânea; e a segunda em 1991, com ainda outra capa e o título Sossego

Piau também guarda boas lembranças dessa época com Tim, com quem tocou também em seu disco seguinte, Reencontro, de 1979, em que Tim gravou mais uma de suas composições com Arnaud, “Vou Correndo Te Buscar”. Ele fala, do ídolo e companheiro de trabalho, “uma voz maravilhosa e um cara bacana. Essas coisas que falam do Tim Maia é tudo intriga da oposição, ele era um gordinho muito simpático, como diz o Nelson Motta: ‘O mais simpático da Tijuca’. E quando ele gostava de alguém, ele gostava mesmo. E graças a Deus ele gostava de mim.”

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